Não foi apenas pelos resultados recentes que a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) escolheu Tite para ser o sucessor de Dunga, demitido após a fracassada campanha da seleção brasileira na Copa América Centenário. Os donos de cinco títulos mundiais caíram ainda na primeira fase, em um grupo em que Equador e Peru avançaram, e só conseguiram balançar as redes na partida contra o Haiti. O novo técnico da equipe nacional tem histórico extremamente prolífico nas temporadas em que comandou o Corinthians, é verdade (venceu um Paulista, uma Recopa Sul-Americana, uma Libertadores, um Mundial e dois Brasileiros em duas passagens, entre 2011 e 2015). O que os dirigentes que comandam o futebol em âmbito nacional buscaram nele, contudo, não foi desempenho: antes de ser uma proposta técnica ou uma solução para o rendimento da seleção, Tite é uma forma de abraçar o discurso de unidade.
Além de ter sido artífice de um período extremamente vencedor no Corinthians, Tite forjou imagem de profissional ilibado e comprometido. A despeito de não ter entrado em campo e de não ter protagonizado lances decisivos, transformou-se no grande símbolo dessa era e se tornou ídolo da torcida alvinegra. Emerson Sheik fez os gols que definiram a conquista da Copa Libertadores de 2012 e Paolo Guerrero definiu a vitória sobre o Chelsea na partida que valia o título mundial do mesmo ano, mas nenhum deles, por diversos motivos, desfruta do mesmo status do treinador.
Tite também se destaca por ter pouca rejeição. Construiu grande parte da carreira entre times do Rio Grande do Sul, São Paulo e Minas Gerais. Mesmo nas ocasiões em que foi demitido, saiu sem ter a imagem extremamente desgastada. Nas últimas temporadas de Corinthians, agregou a consolidação de um estilo respeitoso e até de reverência em relação a rivais. As pessoas podem até não gostar do estilo do técnico, mas é difícil acusá-lo de menosprezo ou de posturas polêmicas.
Foram muitas as facetas do seu trabalho no Corinthians. O time competitivo de 2011/2012 e a equipe brilhante da temporada passada, tiveram erros em proporções parecidas – escolha de atletas, categoria de base preterida, benevolência com erros e insistência com peças e formações, por exemplo. No entanto, o técnico deixou marcas que contribuíram para sua imagem: conseguiu blindar o vestiário, ganhou o respeito de diferentes grupos de atletas, sobreviveu a reformulações mal planejadas, forjou o desenvolvimento individual de uma série de jogadores e evoluiu.
Por todas essas características, incluindo a educação no trato com jornalistas e rivais, o respeito conquistado durante anos de trabalho e a evolução em aspectos técnicos e táticos, Tite era a única opção para a CBF. Se ele dissesse não, a entidade teria de substituir Dunga por outro nome com alto índice de rejeição e encontraria mais dificuldade para amainar o ambiente na seleção.
O Brasil é hoje o sexto colocado nas Eliminatórias Sul-Americanas para a Copa do Mundo de 2018, que será disputada na Rússia, e apenas os quatro primeiros têm vaga assegurada no torneio – o quinto ainda pode se classificar via repescagem. O trabalho do novo técnico não é simples: recuperar a autoestima do grupo, reincorporar jogadores desprezados por Dunga, recobrar a relação entre seleção e torcida e, formar um time capaz de chegar ao Mundial. Isso sem contar a criação de um ambiente positivo com os atletas – o antecessor dele tinha problemas de relações pessoais e já não funcionava como um líder incontestável.
O treinador tem na seleção um desafio profissional praticamente inigualável: se vencer, subirá a um patamar de idolatria em âmbito nacional; se perder, terá justificativas como a falta de talentos ou o início ruim de trabalho sob a gestão de Dunga. A escolha, contudo, não podia ser mais respaldada. A CBF buscou a unidade ao elegê-lo para o cargo
Além disso, Tite se preparou para o cargo. O treinador sempre deixou claro que almejava trabalhar na seleção e vinha fazendo o possível para estar pronto quando o convite aparecesse – ele esperava ter sido chamado em 2014, depois da Copa do Mundo, quando a CBF preferiu Dunga.
Ao contratar o treinador, portanto, a CBF faz um apelo à popularidade dele. É uma tentativa de resgatar o apoio do público à seleção e ao menos reduzir a crise de imagem vivida pela equipe nacional nos últimos anos. Para fazer isso, a entidade aposta num profissional carismático, defendido pela massa e com pouca rejeição, mas também entrega uma mensagem subliminar de valorização do trabalho e da preparação para as oportunidades.
Se souber usar isso, o treinador desfrutará de uma autonomia que ninguém tem no posto desde Luiz Felipe Scolari na seleção pré-Mundial de 2002. Na época, o dilema era parecido: a seleção acumulava crise de identidade e resultados ruins, e a CBF atravessava momento político conturbado – Ricardo Teixeira, presidente no período, convivia com denúncias e estava fragilizado, situação que também emula o panorama atual de Marco Polo del Nero. Felipão usou o influxo e conseguiu liberdade em aspectos como planejamento, convocações e metodologia.
A presença de Edu Gaspar, que era gerente de futebol do Corinthians e servirá como elo entre Tite e a diretoria da CBF, sugere que o técnico também conseguiu algum respaldo. O ex-jogador pode ser um preposto ou um representante em assuntos políticos. Assim, além de isolar o trabalho de campo, evitaria um contato mais próximo entre o comandante e dirigentes – Tite assinou em dezembro, é bom lembrar, um manifesto pedindo a saída de Del Nero e de toda a atual cúpula da CBF.
Até por isso, Tite perdeu uma chance de fazer história. Ele teria dado um recado incrível se renunciasse ao cargo e anunciasse ter feito isso em nome das questões políticas da CBF. Mas esse era apenas um caminho e não, necessariamente, o mais eficiente. Se tiver autonomia e tempo, o treinador pode promover mudanças em aspectos concernentes a seu trabalho – o campo, a postura dos atletas e o orgulho da seleção, por exemplo.
Ter confiança no caráter de seus superiores é sempre o cenário ideal, evidentemente, mas não é sempre a única solução (infelizmente, diga-se). É possível trabalhar com pessoas que tenham posturas discutíveis, desde que isso não contamine suas escolhas ou prejudique sua autonomia. O ambiente é uma influência relevante, é claro, mas não é tudo. Dizer coisas como “todo político é corrupto”, “todo mundo é corrupto em determinada empresa” ou “trabalhar para tal pessoa é ser conivente com as ações dela” é um reducionismo perigoso e ignora noções extremamente pessoais.
É lícito que Tite tenha o sonho de dirigir a seleção brasileira e é justo que ele imagine ter algo a contribuir com o futebol nacional. É perfeitamente compreensível que ele entenda que estar dentro é a melhor forma para isso. Desde que exista liberdade de trabalho, é claro.
Por isso o discurso de unidade é tão importante agora. Tite não é apenas uma aposta diferente para o comando técnico da seleção brasileira, mas uma chance de mudança real na equipe e no futebol nacional. Basta saber se ele e as pessoas que comandam o esporte local saberão aproveitar isso.