Sempre que se aproxima um clássico de ampla rivalidade, inicia-se o debate sobre a divisão dos ingressos.
A grande justificativa para a torcida única ou a divisão não equânime entre as torcidas é a questão da violência.
É imprescindível uma análise mais profunda nos contextos históricos, políticos e sociais para que se identifique as reais causas da violência.
Entretanto, não se pode, contudo, afastar que as causas da violência provem da própria sociedade.
“as causas da violência no esporte devem ser buscadas na sociedade. E aqui não há como escapar ou negar que a exclusão social é um fator preponderante dentre as múltiplas causas da violência. A pobreza, as péssimas condições de vida, o desemprego, a falta de escola, de moradia, de cultura, de lazer, etc”¹.
A violência relacionada ao esporte deve ser compreendida em um sistema de metabolismo social contemporâneo.
Os episódios de violência veiculados pela mídia, na maioria das vezes, envolvem confrontos diretos entre torcedores rivais, o que acaba por gerar perplexidade e disseminar a sensação de insegurança entre a população e os pacatos frequentadores de jogos em estádios de futebol.
Na tentativa de minorar o lastimável quadro de violência em jogos de futebol, o Poder Público passou a sugerir a realização de jogos com torcida única como forma preventiva diante dos latentes riscos de segurança e ordem pública.
A medida, entretanto, divide opiniões²:
Uma das vozes mais atuantes neste sentido é a do Promotor do Ministério Público de SP, Dr. Paulo Castilho. Para ele trata-se de “uma medida transitória e emergencial para conter esta onda de violência, até conseguirmos estabilizar a situação”.
Também favorável à medida, o ex-ministro do Esporte, Orlando Silva, menciona que “não faz sentido futebol sem público, mas é hora da torcida única como medida emergencial nas decisões”.
Segundo Irinaldo Pacheco, o Nadinho – diretor-geral da Fanáutico, principal torcida do Náutico. “A única torcida visitante que vai ao estádio é a organizada, e sempre tem confusão. Por isso, sou a favor da torcida única”.
Na esteira dos contrários a torcida única, pondera o Cel. Marcos Marinho, ex-comandante da PM de SP que “a sensação de segurança fica maior, e os riscos menores, mas acho que ainda não é o momento”.
Para o diretor da Mancha Alviverde, Rafael Scarlatti, torcida única seria “uma vitória da violência, já que as torcidas terão de pagar por uma ineficiência do Estado”. “Quem quer brigar vai para a ‘pista’ de todo jeito. A violência em Pernambuco é fora dos estádios, e isso só vai fazer com que as brigas mudem de local. O que é preciso fazer é interditar as vias de acesso aos estádios, em dia de clássicos, e dividi-las entre as torcidas dos dois times”, avalia o Vice-presidente da Torcida Jovem do Sport, Marcelo Domingues.
O Deputado paulista Federal Silvio Torres afirma que “iremos escamotear o problema, deixar de nos atentar para as causas envolvidas e confessar a impotência das autoridades”.
Na opinião do saudoso jurista desportivo, Marcilio Krieger, a medida “é uma forma de segregação que a constituição não permite, além de ser uma declaração da falência do estado para manter a tranquilidade social. Essa é uma briga de gato e rato, mas não será com torcida única que a violência será coibida. Isso tira o direito de um inocente assistir a um jogo, embora ele não tenha agido de forma contrária à lei”.
Vale ressaltar que o fenômeno da violência envolvendo futebol não ocorre apenas no Brasil, mas em vários países, especialmente da América Latina, como é o caso da Argentina, que instituíram jogos com torcida única como medida preventiva a segurança contra as temidas barra bravas.
A medida adotada pela Argentina, assim como no Brasil, também é bastante debatida.
Em matéria datada de 28/08/2013, sobre torcida única, o jornal LANACION em sua coluna “canchallena”, destacou o posicionamento do presidente da AFA – Associação do Futebol Argentino, em que mencionou terem sido decisões pouco inteligentes.³
No Brasil, do ponto de vista jurídico, a adoção de torcida única encontra um de seus fundamentos, o disposto no art. 17 da Lei nº 10.671/2003 conhecida como Estatuto do Torcedor, que prevê dentre outras ações, medidas preventivas de segurança em partidas com excepcional expectativa de público.
Art. 17. É direito do torcedor a implementação de planos de ação referentes à segurança, transporte e contingências que possam ocorrer durante a realização de eventos esportivos. § 2o Planos de ação especiais poderão ser apresentados em relação a eventos esportivos com excepcional expectativa de público.
Mas afinal, considerando que o futebol é um patrimônio cultural brasileiro reconhecido mundialmente, a adoção de torcida única estaria ligada ao despreparo ou incompetência pública?
Em um primeiro momento, poderia se arguir se o artigo citado não fere diretamente disposições constitucionais, pois conforme já se verificou neste estudo, o dever de segurança pública, tanto no âmbito preventivo quanto repressivo, é de competência da administração pública, ou seja, do Estado.
A grande questão que se coloca é qual o limite da responsabilidade dos atores elencados no referido artigo para que de fato se produzam os efeitos preventivos desejados. A questão é muito discutida tanto pela jurisprudência quanto pela doutrina especializada.
Deve-se atuar de forma repressiva, punitiva e, ainda, preventiva. Documentos do Conselho da Europa concluíram que a deterioração das instalações dos estádios pode vir a ser um fator gerador de violência envolvendo espectadores de futebol dentro dos estádios, assim como a má organização do futebol e de seu espetáculo.
Tal como ocorreu na proibição do consumo de bebidas alcoólicas, na ânsia de dar uma reposta à sociedade e apontar soluções para a crescente violência nos estádios de futebol, escolheu-se a rivalidade como vilã.
Assim, deve haver um conjunto coordenado de ações entre entidades privadas e o Poder Público para atacar a violência no futebol, especialmente com a maior qualidade dos produtos de entretenimento esportivo”.
Diante de todo exposto conclui-se que resta evidente a urgente necessidade de se encontrar caminhos alternativos que garantam o pleno exercício de direitos fundamentais constante na Carta Magna que se encontra em rota de colisão. Ou seja, é preciso garantir o direito às liberdades individuais e coletivas alinhadas à segurança e ordem pública.
Urge destacar que mediante o quadro de violência que tomou conta do futebol, o Estado, clubes e federações têm se mostrado despreparado e por vezes incompetentes, o que acaba por legitimar, dado os anseios da sociedade, a adoção da medida de torcida única. O que nos dizeres Marcos Lopes, da Tribuna do Norte, “é o atestado de falência da segurança pública de um estado, é o atestado da perda de espaço dos bons, a vitória dos maus, a consolidação da violência e – insisto – a prova definitiva da incompetência do estado em garantir a segurança do bom torcedor”.
A Inglaterra, por exemplo, após a morte de 96 torcedores em Hillsborough, realizou profundo estudo conhecido como “Report Taylor” que apontou as causas da tragédia e, sugeriu uma série de medidas a serem adotadas, como as destacadas por Luiz César Cunha Lima:
Revisão da capacidade de público de todos os estádios; instalação de assentos numerados em todos os setores dos estádios; novas provisões a respeito de primeiros socorros e serviços de emergência em todos os campos de futebol; estabelecimento de grupos locais encarregados de fornecer conselhos sobre a segurança nos estádios; retirada dos alambrados e monitoramento do público na arena desportiva. (LIMA, 2008). ⁴
Por fim, importante destacar a atuação do Poder Público espanhol, no qual as medidas de segurança adotadas pela Comissão Nacional contra a Violência nos Espetáculos Esportivos fizeram com que o corpo de segurança do Estado tivesse plena fiscalização e controle dos espectadores dentro dos estádios e em suas imediações, por meio de câmeras de vídeo e um trabalho sincronizado entre os diferentes corpos de segurança que trabalham durante um evento futebolístico.
[1] CHINAGLIA, A. “A violência nos estádios de futebol: sua origem prevenção e repressão”. In: SÃO PAULO (Estado). A violência no esporte. Secretaria de Estado da Justiça e Defesa da Cidadania, São Paulo.
[2] UOL ESPORTE. Disponível em http://esporte.uol.com.br/futebol/violencia-no-futebol/contra.jhtm#. Acesso em 26 de dezembro de 2014.
[3] LANACION. Disponível em: <http://canchallena.lanacion.com.ar/1614659-vuelven-los-visitantes-al-futbol-pero-solo-plateistas>. Acesso em 26 de dezembro de 2014.
[4] – LIMA, Luiz César Cunha. O relatório Taylor. Brasília-DF: Clubjus, 10 nov. 2007. Disponível em: <http://www.clubjus.com.br/?artigos&ver=2.11535>. Acesso em: 27 set. 2008.