Não foi apenas o desempenho da seleção brasileira que mudou desde que a CBF (Confederação Brasileira de Futebol) contratou Tite para o lugar outrora ocupado por Dunga. As cinco vitórias em cinco jogos com o novo técnico transformaram drasticamente a percepção popular sobre a geração, o time e o nível do futebol nacional. Existe um ambiente positivo em torno da equipe canarinho, e isso é maior do que qualquer resultado do campo. Tite alicerçou seu trabalho em boas práticas de gestão e comunicação, mas também tem servido de exemplo de como o sucesso pode ser uma boa ferramenta de comunicação.
Há um bom exemplo no jogo contra a Argentina, disputado na última quinta-feira (10): a despeito de ter atuado em casa, a seleção brasileira abriu mão do controle da bola no início da partida. Recuou as linhas de marcação e ofereceu o domínio aos visitantes, que não conseguiram ir além de uma posse estéril e fizeram pouco para desestabilizar o sistema defensivo armado por Tite. Como definiu o meia Renato Augusto, os mandantes “souberam sofrer”.
Se a Argentina tivesse encontrado espaço entre as linhas do Brasil ou tivesse aproveitado melhor o momento de maior controle, a análise sobre o início do clássico teria sido outra. Como o time comandado por Tite fez 2 a 0 no primeiro tempo e venceu por 3 a 0, contudo, o que poderia ser inferioridade acabou virando armadilha.
Temos uma tendência de avaliar futebol com a lógica do controle. Costumamos dizer que o melhor time é quem mais tem a bola ou o que atua em uma faixa mais avançada do campo. Ignoramos muitas vezes as nuances desse cenário.
Em sua última passagem pelo São Paulo, Muricy Ramalho montou um time que controlava a bola. A equipe paulista era um exemplo perfeito de domínio estéril: trocava mais passes do que qualquer adversário, passava muito tempo no campo de ataque e sofria para transformar isso em chances de balançar as redes.
Foi essa a principal questão em torno de Pep Guardiola no início do trabalho do técnico em Barcelona. Os catalães tinham a bola, gostavam de controlar o jogo, mas o estilo moroso nem sempre era eficiente para criar espaços.
Em outras modalidades, a lógica do domínio do jogo é bem mais maleável do que no futebol. No basquete ou no handebol, por exemplo, o time que se defende bem e que trabalha estrategicamente com contragolpes não é visto como “inferior”. Há uma noção mais clara de que as ações ofensivas podem ser construídas a partir de diferentes naturezas e que nem sempre é preciso controlar as ações para ter superioridade no todo.
É o que acontece no xadrez, para falar de um exemplo mais distante: se o que vale no jogo é derrotar o rei adversário, nem sempre a melhor estratégia é tirar peões e outras peças do tabuleiro. É perfeitamente plausível a ideia de atrair um adversário e oferecer algumas de suas armas para encontrar um caminho específico para o triunfo.
O sucesso de Tite é um exemplo de que há diferentes caminhos para o bom futebol. A seleção hoje não é um time que pretere a bola; em vez disso, é uma equipe preparada para diferentes situações que o jogo pode oferecer. O elenco comandado pelo treinador soube construir vitórias a partir de forte pressão sobre a saída de bola do adversário (contra a Venezuela, por exemplo) ou tocar a bola para diminuir o ritmo (foi assim diante da Colômbia). Não há qualidade maior para um grupo do que repertório.
Em cinco jogos, a seleção brasileira fez mais do que mostrar que há diferentes caminhos para a eficiência e que nem sempre o pragmatismo precisa ser sinônimo de covardia ou de mau futebol: Tite investiu na criação de um ambiente positivo, baseado em boas práticas de comunicação e gestão de pessoas.
A seleção brasileira tem hoje uma realidade favorável, e os resultados são apenas parte (ou consequência) disso. Não é por ter vencido cinco jogos em cinco que o trabalho de Tite tem méritos, mas esses resultados confirmam o que tem sido feito.
O ambiente favorável serve até para amenizar a crise institucional vivida pela CBF. A entidade que comanda o futebol nacional não deixou de ter problemas e tampouco melhorou em seus processos de gestão, mas agora tem um esteio mais consistente.
Sim, Tite acabou virando um importante escudo para a gestão que poucos meses atrás ele mesmo havia condenado em abaixo-assinado. No documento, o treinador e outras figuras relevantes pediam mudanças no comando do esporte mais popular do país e cobravam a saída de Marco Polo del Nero, presidente da CBF, denunciado pelo FBI por corrupção.
Tite não precisa ter aberto mão de suas convicções para entender que é possível trabalhar numa empresa sem concordar com tudo que acontece em escalões superiores. A contribuição do treinador para um futebol melhor poderia ter sido incrível se ele tivesse rejeitado o convite da CBF, mas também é grande ao usar o sucesso para ensinar a relevância de bons processos de comunicação e gestão.
O caminho pode ser menos radical ou menos intenso, mas a ruptura nem sempre é o único jeito de ensinar ou de estabelecer novos parâmetros. Os primeiros jogos da seleção mostram isso.