O futebol entre o saber, o não-saber e o saber que não se sabe

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Fonte: Iniesta Surrounded

 

“Só sei que nada sei”
Sócrates

 
Muito se falou, durante o último mês, sobre a importância da assim chamada dimensão mental para futebolistas em geral, especialmente no alto rendimento. Por algum motivo (talvez pela persuasiva aparência do chamado moderno), parece haver aqui uma leve camada de ineditismo, como se a relevância do treinamento da mente fosse uma descoberta recente (o que soa assustador, aliás). Da mesma forma, percebo um viés razoavelmente reducionista neste discurso. Por isso, proponho aqui um outro debate, mais humanizado. Vejamos.
Por uma série de razões (alguma delas pretendo tratar em breve), temos uma tendência a organizar nosso conhecimento por áreas, dividi-las em caixas muito bem delimitadas. No futebol, parece razoável afirmar que, em linhas gerais, nos acostumamos a quatro grandes caixas: tática, técnica, física e mental (incluo aqui os respectivos sinônimos). Os leitores e leitoras concordarão comigo que avançamos consideravelmente no entendimento das três primeiras caixas, mas talvez não exatamente na última. Duas breves justificativas seriam: I) o rendimento é utilitário, de modo que um determinado saber será valorizado na mesma medida da sua ‘utilidade’, pensando no resultado; e II) o futebol ainda convive com os resquícios da ruptura mente/corpo que, neste caso, enfatiza o segundo em detrimento do primeiro.
Aqui, temos um problema: ainda que esgotemos as possibilidades epistemológicas de cada uma das áreas, poucos serão os progressos se elas não dialogarem entre si. Quando se fala que é preciso trabalhar apenas a dimensão mental, interpreto que é preciso trabalhar em uma das caixas, a parte que falta. Mas talvez o ponto não esteja ali, pois para além de cada parte, estão as relações entre elas. É bem verdade que essas relações, possivelmente, escapem ao conhecimento humano (uma vez que a racionalidade é limitada). Mas, ao mesmo tempo,, enfatizar uma das áreas de um ser, pouco acrescenta à sua percepção, porque ele só existe integrado, uno.
É por isso que defendo, ao invés de somente uma preparação mental, mergulharmos em uma preparação humana. Em um futuro próximo, imagino clubes e federações investindo fortemente na contratação de mais e mais psicólogos. Veja bem, é evidente que psicólogos devem ser parte essencial do corpo técnico de qualquer clube que trabalhe com formação/rendimento, e quaisquer atletas, desde a mais tenra idade, em muito se beneficiariam de um bom acompanhamento psicoterápico (ainda que muitos o recusem, baseados em uma virilidade questionável). Mas nosso problema não se resolve somente contratando profissionais da área. Há mais trabalho a ser feito.
Este trabalho está personificado em Sócrates, que promoveu uma verdadeira revolução moral em Atenas quando instituiu o seu método de investigação da realidade. Em um período dominado pelos sofistas – os artistas da retórica, que julgavam ser possível ensinar o que não se sabe -, o método socrático não parte da retórica, mas da dialética, do diálogo. Ao invés de responder, Sócrates pergunta. Assim como Fenarete, mãe do filósofo, fora uma parteira de corpos, Sócrates desejava ser um parteiro de almas. Através das perguntas certas, com um método rigoroso (exortação, indagação, ironia, maiêutica) ele permite ao interlocutor descobrir a verdade por si próprio, a partir da contemplação interior. Assim como quem dá à luz é a parturiente (e não o obstetra), quem gera a verdade é o próprio sujeito, mais ninguém.
O grande ponto, leitores e leitoras, é aqui temos uma subversão absoluta do locus da verdade. A partir daqui, a verdade não mais estará no objeto, mas sim no próprio sujeito, razão pela qual todas as tentativas de imposição de um dado conhecimento são vistas não apenas como inverídicas (pois o sábio é aquele que sabe que não sabe), como também violentas, pois castram, em absoluto, a autonomia do sujeito. A função do educador (leia-se, do treinador) seria outra: seria induzir o educando (atleta) a descobrir as próprias soluções, seja através do diálogo, seja através de cada uma das sessões de treino, por exemplo. Enquanto o atleta não for convidado à visitação de si, dentro e fora do jogo, ele ainda será vítima das próprias amarras e será, no jogo, apenas uma ou mais partes de si mesmo, não será inteiro. Várias caixas preenchidas não formam um ser integrado.
Isso significa que talvez seja urgente repensar o lugar da pergunta no processo de treino e de jogo, ao longo do tempo. Processos que se alimentam das perguntas (ao invés de respostas pasteurizadas) podem ser o combustível que falta para que o atleta, na sua inteireza, investigue as soluções por si mesmo, seja um exímio resolvedor de problemas, através das suas próprias ferramentas (que são únicas e complementares às de jogadores e treinadores). Talvez este processo nos permita avançar em uma das nossas grandes platitudes: formar indivíduos, ao invés de meros atletas. Nós, treinadores, devemos ser artistas dos problemas. Os jogadores são os artistas das resoluções.
Assim, caminhamos para uma formação muito mais humanizada, que dá ao humano o que lhe pertence, e que lhe permita ser mais do que é. Atletas não são, atletas estão: mudam ao longo do tempo, assim como todos nós e as próprias coisas. Cabe a nós decidirmos se seremos espectadores passivos da mudança, meros sofistas da bola, ou se seremos parteiros, que dão aos atletas, ao invés de meras instruções, o direito de gerarem a vida e o jogo por si próprios, o que não apenas não invalida, como potencializa os resultados em campo.
Me parece um caminho irresistível.

 

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