Seja pelo alcance, pelo carisma, pelo potencial midiático ou pelo perfil controverso, o fato é que Neymar repercute. Absolutamente tudo que ele faz atinge um número gigantesco de pessoas de perfis totalmente diferentes. A despeito de falar quase exclusivamente apenas com sua bolha, o atacante do Paris Saint-Germain se comunica com um público bem mais amplo e mais diverso. Por isso, não foi nada surpreendente o resultado da campanha publicitária da Gillette que foi veiculada no último domingo (29). No texto, o camisa 10 reconhece o abalo de imagem sofrido com a Copa do Mundo de 2018 – o Brasil foi eliminado pela Bélgica nas quartas de final e viu seu principal jogador virar chacota mundial pelo estilo histriônico e pelo excesso de simulações. Neymar só não pediu desculpa.
O vídeo de 1min30 em que diz coisas como “a real é que eu sofro dentro de campo”, “eu ainda não aprendi a te decepcionar”, “eu ainda não aprendi a me frustrar” e “dentro de mim ainda existe um menino” esbarra em um problema basilar: é impossível estabelecer qualquer tipo de conexão com um material que não é minimamente crível e não conversa sequer com o nicho. E isso acontece apenas por “ser publicidade”, “ler um texto criado por outro” ou “não mostrar a cara em um momento tão relevante”. Foi o segundo pronunciamento de Neymar depois da Copa do Mundo de 2018, e o primeiro aconteceu em um post na rede social Instagram – apenas texto, sem qualquer oportunidade de olho no olho.
Do ponto de vista da Gillette, a estratégia tem muitos acertos. Em primeiro lugar, a marca conseguiu pegar carona no alcance de Neymar e fez sua mensagem viralizar. Segundo o jornal “O Globo”, o atacante cobrou R$ 1 milhão pela campanha, que foi veiculada no intervalo comercial do dominical “Fantástico” (o custo da inserção não está nessa conta). No entanto, o maior ativo que ele ofereceu ao processo foi a distribuição: o material foi divulgado nos canais do próprio jogador e amealhou mais de 1,2 milhão de visualizações nas primeiras 24 horas (com mais reviews negativos do que positivos, é verdade, mas até essa rejeição foi mais direcionada ao atleta do que à marca).
Para Neymar, a comunicação também é uma bola de segurança. O jogador já havia recorrido anteriormente a comerciais para falar sobre suas questões comportamentais. Em 2011, quando ele tinha 19 anos, uma campanha da Nextel o apresentou como um personagem controverso, mas em um processo de evolução pessoal. Aquele contexto era mais favorável ao atacante, diga-se: o material tinha versões similares com outras personalidades, o que personalizava menos a discussão, e ainda se tratava de fato de um garoto. Agora, aos 26 anos e depois de duas Copas no currículo, é bem mais difícil para ele esse apelo à imaturidade como se fosse elemento de empatia e não de crítica.
A campanha também não é novidade do ponto de vista de gestão de imagem de celebridades. Ronaldo, quando teve questões na carreira, também recorreu ao “Fantástico” para dar sua versão. A diferença nada sutil é que o Fenômeno fez seus discursos em entrevistas, ainda que tenha combinado previamente abordagens, roteiros e reações. Não é simplesmente o espaço que determina a autenticidade do material – a publicidade pode passar uma mensagem verdadeira e o jornalismo mal feito pode ser maléfico para a gestão de imagem.
Mas Neymar não é como seus antecessores, que usavam a mídia como intermediário para conversar com o público. O atacante do PSG controla seus próprios canais e seu discurso, o que simboliza uma geração diferente e também ajuda a explicar por que ele tem uma relação bem menos próxima com canais de comunicação. As mensagens partem da bolha e conversam com a bolha, ainda que reverberem no lado externo. E o que mais acontece com esse conteúdo, aliás, é que as críticas mais severas sobre modus operandi partam justamente de quem está fora da redoma.
O que chama atenção no comercial da Gillette é que a mensagem não funciona nem com a bolha. É um conteúdo que não conversa com quem está a milhas dos “tóis” e dos “parças”, mas tampouco funciona para o séquito do atacante. Ainda que a companhia tenha alegado que o material é fruto de pesquisa, o tom é absolutamente errado em qualquer ótica.
Chico Buarque sugeriu certa vez a criação de um ministério do “vai dar m…”. A função da pasta seria basicamente a de apresentar ao presidente da República uma visão mais comedida e discutir possíveis problemas de cada decisão. Se houvesse um consenso para cortar pela metade o salário mínimo, por exemplo, caberia a esse núcleo levantar os argumentos contrários e avisar que “isso vai dar m…”. O jornalista André Barcinski fez sugestão similar há alguns anos, quando disse que quase todos os problemas em redes sociais seriam resolvidos com um botão “tem certeza?” antes da publicação de qualquer conteúdo. É impressionante que ninguém tenha feito esse papel com Neymar.
Dias antes de o comercial ter sido veiculado, a rede social Facebook desmontou um esquema de fake news que envolvia páginas e perfis falsos no Brasil. Desabilitou a rede que até então era supostamente ligada ao MBL (Movimento Brasil Livre), e o grupo, além de ter assumido a autoria do conteúdo, resolveu protestar contra o que classificou como censura. Horas depois disso, a rede “O Boticário” publicou em seus canais uma campanha sobre o Dia dos Pais e foi acusado por internautas de cometer “racismo reverso” por ter retratado uma família em que todos os integrantes eram negros.
O que esses dois casos têm a ver com Neymar? Em ambos, o fato ganhou menos repercussão do que a percepção. Não há nada de novo com as fake news; novidade é você poder se fechar em uma bolha e consumir apenas os temas do seu agrado e as versões com as quais você concorda, independentemente do assunto. A segmentação de canais possibilita que os militantes de esquerda tenham pouco ou nenhum contato com as mensagens da extrema direita, e vice-versa.
Como consequência, as redes sociais intensificaram a produção de conteúdo segmentado. Há uma clareza maior sobre canais, públicos e que tipo de mensagem funciona com cada grupo. É nesse aspecto que a mensagem de Neymar falha tanto: os clichês enfileirados no comercial da Gillette simplesmente não conversam com nenhum grupo. A quem se destina aquela mensagem?
É nítido o trabalho que o estafe de Neymar tem feito depois da Copa para reconstruir a imagem do atacante. Contudo, o que mais chama atenção nesse projeto é a falta de um norte: até aqui, o atacante parece atirar em diferentes direções: alterna estratégias inovadoras com ações ultrapassadas, não constrói conteúdos eficientes com nenhum grupo e não cria uma figura empática independentemente do receptor da mensagem.
A reconstrução de imagem de Neymar pode até funcionar no médio ou no longo prazo. Enquanto ele seguir totalmente despreocupado com seus interlocutores, porém, esse processo vai ser muito mais complicado e tortuoso.