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Pep Guardiola: um idealismo realista? (Foto: Reuters)

 
Aos olhos de um garoto que jogava futsal, muitas coisas me soavam interessantes, mas uma, em especial, sempre me inquietava: por que todas as jogadas que ensaiávamos em cada tempo técnico sempre davam errado? Veja bem, nossas ideias eram absolutamente sofisticadas: fulano toca para sicrano, que rola metros atrás para o beltrano, que apenas pisa para o fulano, que a essa altura já passou pelos outros dois e chutou a gol. No campo das ideias, era uma estratégia infalível! Mas, quando jogávamos de fato, tudo terminava exatamente diferente, às vezes com a bola em outras redes que não as do adversário.
Precisei de tempo e maturidade para perceber a distância mais do que razoável entre nossas ideias e o jogo jogado. Existem, por assim dizer, dois jogos diferentes: um jogo ideal e um jogo real. Como jogo ideal, pensemos não apenas no jogo perfeito, sonhado, mas sim em toda a narrativa interna que o precede, onde depositamos todos os nossos desejos e expectativas mais otimistas. Como jogo real, pensemos no jogo jogado, em todas as suas dimensões, com a oposição, as contradições e a inteligência própria que parecem estar no coração do próprio jogo. Geralmente, ideal e real não estão em consonância. Vejamos.
Uma das diferenças entre o jogo ideal e o jogo real está flagrante: o jogo ideal é propriedade de quem nele pensa, o jogo ideal é pronome possessivo e estará, sempre, sob absoluto controle. Para o atleta, o jogo ideal é um gol decisivo nos acréscimos, são dois ou três dribles desconcertantes, um carrinho perfeito (para delírio da torcida) ou a mais bela defesa, decisiva. Para o treinador, o jogo ideal é domínio puro, nó tático, sincronia entre intenção e ação, elogios polpudos de imprensa e torcida, perfeita comunhão com atletas e diretoria. Uma semana de trabalho cheia, sem lesões, atletas no pico de performance, cada exercício de cada sessão nos mais perfeitos níveis de volume e de intensidade, seguidos das devidas recuperações. Todos os objetivos operacionalizados. Jogo ideal.
O problema é que o jogo ideal não se basta. É preciso sair da ilha e jogar o jogo real. E o jogo real está distante da utopia, pois é lesão e substituição, é um equívoco do árbitro, é uma falha de quem não se espera, é uma crítica absolutamente injusta. É vestiário difícil, é atleta insatisfeito, é treinador eventualmente obsessivo, é salário atrasado (às vezes no plural), é problema particular, é instabilidade extracampo, é treino que não sai como se pensa, enfim… são todas as circunstâncias que estão à margem ou no coração do jogo, prontas para interferir, em maior ou menor intensidade. Aos treinadores e treinadoras, atletas, comissão, diretoria e afins, cabe manejar essas contradições e, não bastasse isso, manejá-las em tempo real. Pois além das circunstâncias, o tempo do jogo também não é ideal. O jogo é todo real.
Assim como um cobertor curto não pode cobrir os pés e a cabeça ao mesmo tempo, o jogo real não pode atender à inteireza dos desejos de quem joga. As equipes que desejam muita posse podem não ter profundidade, as equipes que atacam em demasia podem sofrer em transição defensiva, as que abusam dos ataques diretos podem inutilizar os meias. Treinadores e treinadoras que priorizam uma equipe titular precisam lidar com a desmotivação de um ou outro reserva, mas os que valorizam os rodízios também precisam lidar com a estranheza de um ou outro atleta e da imprensa. Para o jogo real, é preciso que treinadores e treinadoras façam uma espécie de cálculo, como faziam os utilitaristas, que mostre se os bônus de um determinado modelo ou tomada de decisão compensam os ônus. Quando as contas não batem, é porque algo deve ser repensado.
Sabendo disso, me admira como as críticas de mesmo alguns dos mais sérios formadores de opinião são herdeiras do ideal, não do real. Pois as soluções do jogo estão muito longe da simplicidade: muitas vezes, substituir o jogador A pelo jogador B não basta, convocar o jogador X ao invés do Y não resolveria os problemas de uma determinada equipe (curiosamente, observações desta natureza são geralmente a posteriori), assim como descartar imediatamente um atleta em má fase, como se ele fosse um resíduo qualquer, está longe de ser uma solução adequada (afinal, o jogo real não se joga com lixo, mas com gente). Da mesma forma, me parece razoável afirmar que treinadores e treinadoras não são míopes: nós geralmente sabemos, em maior ou menor escala, sobre os problemas das nossas equipes. Mas saber basta? Todos sabemos que a vida boa é felicidade e alegria, mas isso não impede que, via de regra, a vida seja melancolia, incompletude e solidão. No processo de treino não é diferente: saber não basta. É preciso mais.
É preciso, por exemplo, que encaremos com absoluta seriedade o processo de treino. Se treino é jogo e jogo é treino, quer dizer que devemos jogar todos os dias, em maior ou menor complexidade, mas devemos jogar. Neste sentido, me parece que o treino fragmentado flerta intimamente com o jogo ideal: as variáveis estão sob controle absoluto, há tempo, espaço e tranquilidade para um ou vários chutes a gol, às vezes os adversários são fantasmas e nossa movimentação é perfeita, incrivelmente harmoniosa, e nós estamos absolutamente confiantes para o jogo. Mas o jogo é real. Sendo real, ele é oposição, é alternância, é instabilidade, é imprevisibilidade: é um mar bravo, revolto, no qual sobrevivem apenas os bons marinheiros e marinheiras, que são bons não porque tentam controlar o mar, mas porque cultivaram e cultivam um método para melhor adaptar-se a ele. Assim, parecem melhores as metodologias baseadas no jogo, pois são elas, em maior ou menor intensidade, que reproduzem as contradições do jogo real. Que reproduzem o mar, se você preferir.
O jogo real não nega, e jamais negará, o poder das ideias, pois nelas estão os alimentos da melhor qualidade para jogadores e para o próprio jogo. Mas isso não significa que devamos jogar o jogo real a partir das ilusões idealistas. As distâncias entre os dois estão para além do que podemos saltar.
E jogar o jogo real significa, também, saber até onde podemos ir.
 

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