Tão logo terminou o treinamento, eu estava do lado de fora do campo, à espera dos atletas, quando alguns deles decidiram cobrar faltas. Embora não estivesse no meu planejamento, mostrei-me flexível. Afinal, não apenas se tratava de um interesse bastante razoável (afinal, falamos de um dos chamados momentos do jogo), como era uma chance para que alguns dos atletas tivessem mais alguns minutos de descanso, uma vez que havíamos treinado em intensidade razoavelmente alta para o contexto.
A cada cobrança eu maquinava, em silêncio, sobre as estratégias que me cabiam para que os cobradores melhorassem seus resultados. Como as bolas paradas carecem de oposição (pelo menos oposição direta), me parece que o refinamento pedagógico deve ser duplamente singular: ali, não se trata apenas da relação entre atleta e bola, mas da relação do atleta consigo mesmo, expressa no contato com a bola. Uma cobrança ruim denota algum ruído entre o desejo e o real, uma interferência (não exatamente visível) na sintonia fina necessária para uma cobrança próxima da perfeição. É por isso que não me parece que a mera repetição permita sincero crescimento, não apenas porque a repetição, ali, está distante dos reais constrangimentos do jogo (resultado, torcida, cansaço), como porque a repetição, por si só, não é o que permite que o atleta se questione sobre seus próprios ruídos. Este é o papel do treinador: permitir que o atleta e a equipe encontrem sua mais perfeita sintonia, nos diferentes momentos do jogo. A questão é que as sintonias nunca são as mesmas, e cabe aos treinadores e treinadoras a devida sensibilidade para identificá-las em cada atleta, como veremos abaixo.
Quando os atletas voltaram, segui meu protocolo: abri espaço para que eles se manifestassem sobre o treino. Este deve ser um processo substancialmente valorizado por treinadores e treinadoras, ao menos por dois motivos: primeiro, porque permite que os atletas percebam que são parte do caminho que está sendo pavimentado. Depois, porque construir este espaço presume que o treinador saia de si. Para construir um espaço em que os atletas se sintam realmente autorizados a ser quem são (e não quem treinadores e treinadoras gostariam que fossem), é preciso despir-se dos mais profundos sentimentos de controle, das mais verticais ideias de liderança. É um processo doloroso, mas necessário.
À medida que os atletas se sentem importantes, eles externam suas impressões sobre o modelo de jogo, sobre os espaços ainda presentes na primeira linha defensiva, sobre os momentos em que uma dada equipe não precisa ser tão vertical em transição, talvez possamos apenas retirar a bola da zona de pressão e, então, construir com mais qualidade. Os olhos dos atletas são a extensão dos olhos dos próprios treinadores e treinadoras: eles enxergam coisas que não enxergamos, por ângulos que não nos são acessíveis, sob restrições que podemos inferir, mas não mais sentir como eles sentem. Por isso, a sintonia entre treinadores e treinadoras com seus atletas, e de todos e todas consigo mesmos, superando os ruídos, parecem fundamentais no processo, exatamente para criar os espaços, os ambientes onde podemos, ao nosso modo, ser quem somos. Mas não por nós mesmos. Pela equipe.
Como eu dizia, os atletas fizeram várias observações, algumas delas visíveis para mim durante o treino, outras que, evidentemente, haviam me escapado. Em seguida, fiz outra fala protocolar, pontuando todas as observações anteriores e, na medida do possível, associando com o jogo que estava por vir. Tentei ser o mais breve possível, embora treinadores e treinadoras tenhamos uma tendência, quase que inconsciente, a exercitarmos mais a fala do que a escuta – uma das razões pelas quais temos alguma dificuldade em sermos breves. De qualquer maneira, estava bastante satisfeito, pois a maioria dos atletas havia dito alguma coisa, às vezes eles mesmos questionando os colegas, direta e respeitosamente, sem a minha interferência. Os que não se sentem à vontade falando em público, não necessariamente estão calados: seus sinais estão nas entrelinhas, e talvez sejam identificáveis com o tempo. Quando encaminhava para encerrar minha fala, um último atleta, normalmente calado, pediu um minuto. Concedi, evidentemente.
Afinal, era um atleta com o qual eu contava, sempre muito atento, inteligente, as decisões nitidamente voltadas para a equipe. Pois bem, o atleta começou agradecendo pela compreensão, mas encaminhou a conversa para um outro rumo: disse que estava muito feliz com os treinos e com o grupo, mas que, por razões particulares, não se via competindo – ainda que estivéssemos a pouquíssimos dias do primeiro jogo. Não era uma opinião qualquer: era um comunicado, travestido de agradecimento. Ele estava feliz, estaria conosco nos jogos, mas estaria como um torcedor, pois não mais se sentia à vontade competindo. Foi uma fala breve, embora potente.
Aquilo me pareceu absolutamente brilhante, pois talvez o mesmo não acontecesse em outra circunstância. Havia ali alguma sintonia, ou então o atleta jamais diria, a poucos dias do jogo jogado, com um grupo enxuto, que não estaria disponível para competir. Este, evidentemente, foi um motivo de muito orgulho, não apenas para mim, pois como já observamos, trata-se de uma construção coletiva. Por isso, falando em nome do grupo, achei por bem agradecer ao atleta e, ao mesmo tempo, deixar as portas absolutamente abertas, seja para nos acompanhar como um torcedor, fosse para estar conosco como atleta, caso mudasse de ideia (o que, descobriria mais tarde, não iria acontecer).
Por outro lado, veja que curioso: também havia uma parte de absoluto descompasso entre a minha visão e a do atleta. Embora não estivéssemos no mais alto rendimento, eu jamais considerei que alguns deles, por motivos absolutamente legítimos, poderiam não estar exatamente interessados na competição. Reparem como, ainda que implicitamente, estamos sempre guiados pelo fio do mais profundo rendimento, mesmo que nossos contextos sejam outros, ou ainda que pensemos ter os mais nobres valores. Ali, eu percebi uma lacuna latente, evidentemente invisível até então, mas que mostrava como minha preocupação, mesmo tendo em conta todos os cuidados que pensara ter tomado, estava direcionada para o resultado, de modo que sim, havia e há ruídos entre os atletas e o treinador. Nossa função diária é identificá-los, decifrá-los da mais honesta forma possível, para que seja igualmente honesta nossa relação com os atletas e com o espelho. Como treinador, o que posso fazer hoje para amenizar os ruídos na minha prática?
Terminado o treino, voltei para casa, inquieto.
Dias mais tarde, o atleta estava lá, conosco. Torceu do primeiro ao último instante.