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O episódio de Boca Juniors x Cruzeiro é emblemático: após cruzamento da esquerda, o zagueiro brasileiro Dedé disputou a bola e acertou com a cabeça o goleiro Estebán Andrada, que sofreu fratura no maxilar. Eber Aquino, que inicialmente identificou lance normal, teve ajuda do VAR (sigla para árbitro auxiliar de vídeo, em tradução livre) para rever a jogada e tomou uma decisão absurda: expulsou o defensor. Em minutos e com uma escolha simples, o juiz transformou-se em exemplo de pelo menos três coisas: a importância do fator humano no uso da tecnologia em esportes, a fragilidade política do Brasil no atual momento da Conmebol (Confederação Sul-Americana de Futebol) e a dificuldade que a entidade continental tem para lidar com a identidade de seu principal produto.
Por partes, portanto:
O uso da tecnologia no esporte é um caminho sem retorno e uma contribuição incrível, independentemente da modalidade. O futebol saiu atrás em muitos sentidos, sobretudo pela reticência histórica da Fifa, entidade que comanda o esporte em nível mundial. O VAR é um advento que oferece uma série de possibilidades para mudar o jogo, mas não existe solução mágica. Se não houver uma preparação mais adequada dos seres humanos e uma noção mais clara de critérios e caminhos, o futuro seguirá distante. Não há robô ou inteligência artificial que funcione sem parâmetros bem definidos e sem o respaldo de uma figura humana. No fim, por mais que as máquinas tomem decisões ou sirvam como alicerce para esse processo, tudo depende de pessoas.
A fragilidade política do Brasil também é algo a se discutir. O país ainda tem Wilson Seneme, presidente da comissão de arbitragem da Conmebol, mas tem sido notoriamente escanteado – sobretudo depois de o atual presidente da CBF (Confederação Brasileira de Futebol), Antonio Carlos Nunes, ter protagonizado um episódio de comédia pastelão em 2018, quando furou articulação do continente para escolha da sede da Copa de 2026 e votou no Marrocos – os países sul-americanos haviam combinado apoio ao projeto tríplice de Canadá, Estados Unidos e México.
Há diversos reflexos da debilidade política da CBF no atual momento. Na edição 2018 da Libertadores, por exemplo, o Cruzeiro foi prejudicado de forma assustadora pela arbitragem e o Santos foi eliminado após punição pela escalação irregular do uruguaio Carlos Sánchez. Boca Juniors e River Plate, em contrapartida, usaram atletas que não tinham condições de estar em campo – a própria Conmebol admitiu isso –, mas não receberam qualquer sanção.
Isso nos leva ao terceiro ponto: a Conmebol sempre teve entre suas características mais evidentes um absoluto descaso com a Copa Libertadores, o principal evento organizado pela entidade. A história de “clima de Libertadores” é um triste compilado de cenas como policiais com escudos em riste para atletas poderem bater escanteios, violência de atletas e torcedores, ameaças e toda sorte de assédio moral e físico. Como competição, a verdade é que a Libertadores é extremamente mal organizada – e que é assim desde sempre.
O que nos leva ao principal ponto do texto: existe (ou deveria existir, pelo menos) um compromisso de quem organiza com todos os aspectos de uma competição. Entidades como CBF e Conmebol são obrigadas a pensar em fatores como relações institucionais, qualidade do produto apresentado, experiência do público e caminhos para a evolução do que elas comercializam.
Na América do Sul, contudo, estamos acostumados ao contrário. Não existe detrator maior dos torneios da Conmebol do que a própria Conmebol. Não existe problema maior no Brasil do que a própria CBF.
É o que acontece, por exemplo, com as convocações recentes da seleção brasileira. A primeira lista de Tite depois da Copa incluiu jogadores de times envolvidos nas semifinais da Copa do Brasil, e isso gerou um desgaste extremo da comissão técnica da equipe nacional com diretores e torcedores dos times.
Na convocação recente, Tite poupou jogadores dos times que estão na semifinal da Copa do Brasil. Ainda assim, teve de justificar a convocação de Éverton, que desfalcará o Grêmio em uma rodada importante do Campeonato Brasileiro.
Éverton é novo, recebeu apenas a segunda convocação de sua carreira e atua em uma das posições mais disputadas da seleção brasileira. Se abrir espaço para outros jogadores, pode sofrer um prejuízo no espaço que tem lutado tanto para conquistar.
Tite também tem uma necessidade de renovar a seleção brasileira após ter sido eliminado nas quartas de final da Copa de 2018, mas não pode montar a equipe com todos os jogadores que deseja. Isso a meses de uma Copa América que será realizada no Brasil.
Para completar, os amistosos da seleção brasileira pós-Copa tiveram a seguinte lista de rivais: Estados Unidos, El Salvador, Arábia Saudita e Argentina. Não há como formar um time forte sem submeter seus jogadores a desafios de um porte maior do que essa lista.
Tudo isso acontece porque a CBF não consegue organizar um calendário que tenha intervalos nas Datas Fifa. Em outros países, as competições nacionais param quando as seleções jogam.
Além de não criar janelas, a CBF não se posiciona. O desgaste de Tite teria sido menor se a entidade tivesse tomado frente. Seria uma situação diferente se a convocação ou a não convocação de jogadores de determinadas equipes partisse da própria entidade.
A história das convocações da seleção brasileira é apenas um exemplo, e um exemplo extremamente recorrente, mas há outros episódios. A verdade é que a CBF não tem um plano ou um projeto definido para tratar o futebol no Brasil ou para lidar com a imagem do produto que ela vende.
A Conmebol tampouco cultiva o interesse do público pelo esporte em âmbito sul-americano. A Libertadores é uma competição de apelo, mas o interesse pelo evento não vai além do valor que os torcedores dão ao título.
O mercado de entretenimento hoje é cada vez maior e mais diversificado. Na América do Sul, as entidades seguem achando que não precisam se preocupar com isso e que o interesse pelo futebol seguirá sendo orgânico.
Em algumas décadas, o resultado disso pode ser um apequenamento irreversível. O videogame, a TV e o cinema não deixam de investir em caminhos para afagar o público e dialogar com seus consumidores. O futebol está perdendo essa briga no continente.
 

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