Das literaturas sobre futebol

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Cinco leituras, todas ótimas. Mas onde mais está o futebol na literatura? (Divulgação: Futebol Café)

 
Não foi uma, nem duas vezes: já posso contar nos dedos das duas mãos as vezes em que ouvi, apenas neste ano, uma observação que me parece bastante pertinente, ao mesmo tempo que alvissareira. O Brasil, há quem diga, ainda carece da produção de uma literatura mais ampla sobre futebol, especialmente do ponto de vista tático, e seria esta uma das razões que nos deixaram supostamente estagnados. Ou seja, precisaríamos produzir um material mais robusto, não exatamente herdeiro das literaturas estrangeiras, especialmente das ibéricas, mas sim baseado num olhar essencialmente brasileiro sobre o nosso próprio futebol.
É bem verdade que poderíamos interpretar este assunto de diversas formas, mas me satisfaço com uma: será que a suposta carência de uma literatura específica sobre o futebol brasileiro não seria fruto de uma igual carência de leituras? Veja bem, não digo que somos maus leitores, mas me pergunto se os ideais relativos ao nosso futebol, por muito tempo baseado em um empirismo incorrigível, não contribuíram para um olhar mais “prático” sobre o jogo, abrindo mão de uma reflexão teórica mais consistente. Não me admira que até hoje sustentemos o entediante debate entre boleiros e acadêmicos, por exemplo.
Em um outro texto, fiz uma citação do filósofo Arthur Schopenhauer, que retomo agora. Seu livro A Arte de Escrever é um primor para aqueles que desejam refletir sobre a natureza do ato de ler e de pensar. Schopenhauer faz uma crítica aos leitores compulsivos, uma vez que a leitura, segundo ele, é uma forma de se pensar não com a própria cabeça, mas com a cabeça de outrem, é uma forma de abdicar temporariamente do pensamento próprio em prol do pensamento alheio. Por isso, seria importante ler com parcimônia, pois a leitura excessiva seria uma forma de afrouxar os nossos músculos reflexivos, de modo que nossa capacidade de pensar por nós mesmos ficaria, no longo prazo, seriamente prejudicada.
Me parece evidente que o mesmo raciocínio também vale para o futebol, à sua maneira. Se, em algum dia, nos faltou algum tipo de leitura, isso não significa que agora devamos buscar o extremo oposto, e nos tornemos leitores tresloucados, que devoram conhecimento futebolístico, ainda que sem qualquer tipo de digestão e, especialmente, sem qualquer ajuste deste conhecimento à nossa própria realidade. Foi neste sentido a crítica que procurei tecer aqui, quando apontei que a idolatria que devotamos a um certo grupo de treinadores, especialmente estrangeiros, faz com que, na nossa prática, deixemos escapar uma parte de nós mesmos e nos tornemos uma espécie de dupla metade: metade do outro (que tentamos copiar) e metade de nós mesmos. É claro que essa conta não fecha.
É exatamente no desejo que tornar-se quem se é que faço meu apontamento literário: percebo que a minha geração está alimentando uma volúpia excessiva relativa às literaturas específicas sobre futebol. Via de regra, tenho a impressão que grande parte dos futuros treinadores e treinadoras estão lendo os mesmos livros, sobre os mesmos treinadores, nos mesmos círculos de debate, tecendo as mesmas críticas, nos mesmos espaços – sejam eles reais ou virtuais. Para além de meros leitores, desconfio que essa geração esteja formando mestres na arte de decorar biografias, esquemas, atletas e treinadores dos mais diversos clubes. Mas é disso que precisa o futebol?
Não, não é. São duas as críticas que podemos apontar aqui. A primeira: se nossos leitores e leitoras leem as mesmas coisas, sobre os mesmos assuntos, às vezes da mesma forma (acriticamente), é muito provável que todos e todas acabem por pensar de maneira muito semelhante. Este é um problema sério, pois reforça a monotonia ideológica que parece enevoar o futebol de tempos em tempos, expressa na ideia de que há uma única resposta, uma só melodia capaz de tocar a alma do jogo. A pluralidade de ideias parece desmanchar-se em nome de um único ideal, como se as próprias ideias estivessem globalizadas. Mas o jogo tem razões que escapam à racionalidade humana, ora. Se há um caminho que deve ser tomado, é exatamente o caminho contrário, do mosaico do pensar, do exercício da racionalidade própria, o que significa, portanto, que seria extremamente salutar se os novos treinadores e treinadoras não fossem submetidos aos mesmos estímulos, às mesmas leituras, mas fossem, portanto, protagonistas de leituras diferentes do mundo, de modo que o jogar de cada um fosse único, ao invés de um jogar pasteurizado, homogêneo.
A segunda crítica me ocorre das palavras do Professor Manuel Sergio, cuja contribuição é ouro puro. Para saber de futebol, é preciso saber mais do que apenas futebol. Quem só sabe de futebol, nem de futebol sabe. Para se saber de futebol, ao menos aos meus olhos, é preciso desvendar o humano, é preciso ter a coragem de mergulhar não apenas na luz, mas na escuridão da humanidade, claramente refletida na mais singular ação tático-técnica dentro de campo. É preciso e é saudável dedicar-se às mais diversas biografias de treinadores, mas não apenas a elas: também é preciso ler romance, é preciso ler poesia, é preciso ler filosofia. Para treinadores e treinadoras, também é preciso ler Rubem Alves, F. Scott Fitzgerald, Margaret Atwood, Machado de Assis, Fiodor Dostoievksi, Hermann Hesse, Cecília Meireles, George Orwell, Friedrich Nietzsche, é preciso ler os gregos, é preciso ler. É preciso porque nas grandes leituras, a despeito do gênero e dos autores, reside o humano que joga. Desvendar o jogo não necessariamente significa desvendar o humano que joga.
Mas desvendar o humano que joga é um passo enorme para o coração do jogo.
Talvez o passo que falta.

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