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Treinamento do Real Betis, de Quique Setién, logo após a vitória sobre o Deportivo La Coruña, em fevereiro último. (Foto: Portal Onda Betica)

 
Quando um largo apito encerra um treinamento qualquer, e quando essa sessão é particularmente satisfatória, não raro nos invade uma alegria, um contentamento não exatamente descritível. É como se soubéssemos, mesmo inconscientemente, que realizamos um dos grandes fetiches de treinadores e treinadoras, na arte deste ofício: oferecer um bom treino (na lista dos fetiches, talvez perca apenas para aquele em que a nossa equipe joga exatamente como imaginamos um dia). O treino, afinal, é a argila onde esculpimos o nosso jogo, artesanalmente, dia após dia, microciclo sobre microciclo. No treino está posto, muito antes de estar, o jogo que desejamos.
Mas talvez o hábito de planejar, aplicar e avaliar tantos treinamentos, durante tanto tempo, nos tenha furtado, ao menos em parte, nossa mente de principiante. Assim, às vezes corremos o risco de que nossos treinos se tornem uma mera banalidade, óbvio ululante. Quando isso ocorre, em uma base regular, talvez nos escape uma pergunta chave, que retomo aqui hoje: qual é a real finalidade dos nossos treinamentos? Por que treinamos?
Embora óbvia na aparência, não é uma pergunta tão simples assim. Em primeiro lugar, porque ela carrega um viés implícito: se você já esboçou uma resposta mental, logo após a minha pergunta, é porque sabe que o treino não é um fim em si mesmo. Pelo contrário, o treinamento é um meio, um caminho que nos leva rumo a um determinado fim – por isso, aliás, podemos dizer que treino é jogo e jogo é treino. Se treino fosse apenas treino, seria um fim em si, como um cão que corre em busca do próprio rabo. Mas se não é, se há uma finalidade, então que finalidade é essa?
Há quem veja o treino como uma mera obrigação, um protocolo a ser cumprido por qualquer profissional do futebol. Então, na hierarquia dos valores, este treino ocuparia um lugar secundário, servindo apenas para enfastiar a rotina e a existência de atletas e treinadores, para quem o treinamento estaria muito longe de ser uma fonte de prazer. Sendo um mero bater de ponto e levando consigo um valor muito baixo, é razoável afirmar que este treino não nos leva para nenhum lugar específico. Não há uma direção. E para quem não sabe onde vai, qualquer caminho serve.
Há ainda colegas que utilizam os treinamentos simplesmente como um meio para adornar o próprio ego. Veja bem, não há nada de intrinsecamente errado nisso. George Orwell, no ótimo Dentro da Baleia e outros ensaios, lembra que uma das motivações primeiras de qualquer escritor é o orgulho, o desejo de aparecer ao mundo e de ser reconhecido pelo próprio trabalho. Se dissermos que não há qualquer traço de vaidade na nossa atividade como treinadores, estaremos em falta com a verdade. O problema, evidentemente, é quando a vaidade se torna o fim último, ao invés de um pequeno traço comum à espécie humana.
Ótimo, pensemos então em uma resposta mais popular: em linhas gerais, nós treinamos para jogar melhor. Cada vez melhor. Imagino que parte importante dos leitores e leitoras pense algo parecido, e eu diria que este é um caminho bastante salutar. Afinal, aqui os treinamentos não são apenas protocolares e nem movidos pelo ego: são dotados de alguma direção, de um caminho (que pode ser o modelo de jogo, por exemplo) que nos mostra o que deve e, especialmente, o que não deve ser trabalhado, desde o mais simples exercício de uma dada sessão, até o macrociclo. Escolhemos uma série de conteúdos, às vezes os melhores conteúdos possíveis, e tratamos de introduzi-los, nos nossos atletas, em uma base regular.
Mas aqui, permitam-me advogar o cão: seguindo este raciocínio, até que ponto nossos treinamentos, ainda que muito bem intencionados, não caminham para se tornar um puro e simples depósito de conteúdos? Assim como um balão, que estoura quando recebe demasiado ar, será que não estamos saturando os corpos e as ideias dos nossos atletas, tratando-os como meros bancos nos quais depositamos todo o nosso saber, fazendo deles meros locatários da nossa cognição? Será que nossos atletas estão pensando por si ou nós estamos, sem perceber, pensando por eles? Será que o excesso de razão não tem sutilmente transformado nossos treinamentos em grandes despensas, nas quais estocamos nossas ideias ao custo de parte importante da humanidade dos atletas, sob a ilusão de melhoria linear do rendimento? Se tudo isso fizer sentido, então boa parte dos nossos treinamentos talvez não estejam em consonância com aquela finalidade que estabelecemos acima. Nós queremos jogar melhor, mas talvez uma reflexão mais acurada nos mostre que mesmo este objetivo pode ser limitado.
Ou seja, a pergunta segue: por que então treinamos? Como bom mineiro e admirador de filosofia, me darei o direito de não responder, mas posso esboçar um caminho. Vejamos: o treino saturado de conteúdos, embora pareça muito bom, pode não sê-lo, pois faz dos atletas meros depósitos de ideias e, além disso, espera deles que absorvam a todas elas, mesmo sabendo que não apenas é humanamente impossível – não há cérebro que suporte – como que é humanamente questionável – jogadores e jogadoras são mais do que meros depósitos.
Sabendo disso, talvez nos caiba dar um outro passo. E se o treinamento pudesse permitir aos atletas, antes de tudo, um maior conhecimento de si para que, a partir da própria investigação, lhes fosse possível jogar melhor? E se o treino pudesse fecundar a expressão contínua das mais nobres virtudes e sentimentos, de modo que elas se fizessem presentes no modelo e no próprio jogo? E se o treino pudesse, então, ser dotado de um caráter existencial, para além do técnico, tático, físico e etc e, a partir dali, fosse possível expressar ainda melhor todas as dimensões do jogar? E se nós treinássemos não apenas para jogar melhor, isso não nos sacia mais, mas para tornar-se melhor, para muito além do jogo?
Enfim, são pensamentos que me ocorrem.
E que julgo cada vez mais importantes.
 

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