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Massimilano Allegri, da Juventus: do vestuário às variações ofensivas, um exemplo de bom trânsito entre a ordem e o caos. (Divulgação: ghanasoccernet.com)

 
Dos grandes problemas do futebol moderno, há um que me interessa em particular: o problema do ataque. Como treinadores e treinadoras, o que podemos fazer para que nossas equipes criem situações de gol (com bola rolando, especialmente), em uma base regular?
Vamos começar pelo avesso: sabemos que defender bem está longe de ser tarefa simples. Ao mesmo tempo, aqui entre nós, a defesa parece ocupar um lugar prioritário na agenda futebolística contemporânea. Não se trata de uma crítica, é mais uma constatação: além de sintoma do nosso tempo, reflete também a desconfiança e a instabilidade a que treinadores e treinadoras estamos submetidos.
Neste texto, gostaria de refletir sobre o problema do ataque. Para isso, eu mesmo preciso atacar: meu ataque será às estruturas. Até chegar lá, faço um pequeno passeio pela ‘ciência’ – entre aspas mesmo.
Depois, ofereço uma solução: o movimento.

***

Como conversamos em outras oportunidades, o futebol moderno, que não se faz alheio à vida, empresta elementos da assim chamada ciência. Digo ‘assim chamada’, dentre outros motivos, porque falar em ‘ciência’ presume que os discursos científicos, grosso modo, estão no singular, livres de tensões. É como se o empréstimo de ferramentas científicas viesse acompanhado de um carimbo, uma espécie de chip, que marca e iguala os que delas se apropriam (ou servem, para alguns, como expressão de autoridade). Além disso – e digo apenas de passagem, pois já tangenciei este tema em outros momentos-, parece assustadoramente comum uma certa romantização da narrativa científica, como se a ‘ciência’, por si só, fosse capaz de reverter todas as fragilidades humanas. Inclusive as do futebol.
Mas não, a ‘ciência’ não é una e, embora protagonista de inúmeros avanços ao longo da história, tem limites. Ela não é capaz de resolver, na sua totalidade, os problemas do jogo – talvez porque o jogo seja mais arte do que ciência. Mas há um percurso científico, em particular, que nos acompanha onde vamos, conscientemente ou não: o percurso da ordem. Os caminhos abertos por volta do século XVII (com Francis Bacon e René Descartes, por exemplo), são caminhos ordeiros, objetivos, que apostam nas luzes em oposição às supostas trevas, não apenas porque o conhecimento deve estar visto (o que é positivo), como o conhecimento deve estar controlado, regulado, generalizado, alheio às paixões e, em última análise, alheio ao humano. ‘Os afetos contaminam o objeto’, diria alguém.
Muito bem, eis que o futebol, ao seu modo e a seu tempo, recorre a diversos elementos desta mesma ‘ciência’ para olhar para as mais diversas faces do jogo. De certa forma, portanto, o futebol aceita a companhia da ordem e do controle. Isso, por si só, não é negativo (pois permitiu alguns progressos importantes que obtivemos como área nas últimas décadas). Mas será que a nossa geração, tão fortemente herdeira da academia (vide os cursos de formação de treinadores, por exemplo), ao mesmo tempo em que tão carente de pesadas ferramentas reflexivas, não sofre do efeito reverso? Será que o fetiche da ordem não nos domina, sutilmente, no futebol e na vida?
Aposto que sim, e vejo um grande reflexo disso exatamente nos nossos ataques. Quando defendemos, precisamos lidar com inúmeras variáveis, mas a bola não está conosco. Quando atacamos, para além das mesmas variáveis (eu, companheiro, adversário, alvo…), também estamos em posse da bola e precisamos levá-la até o gol, criando os devidos espaços. Mas, se demasiadamente ordenados, será que conseguiremos? Hoje, pensando no caso brasileiro, estamos mais ‘organizados’ em campo do que há 20 anos, mas nosso jogo não está necessariamente mais agradável. Pelo contrário, sinto que nosso jogo (contra a nossa vontade) flerta com o burocrático, o pragmático, o controlado, o regulado e generalizado, alheio às emoções. Talvez porque nosso jogo não está mais ordenado, mas está se tornando hiperordenado, submetido à ordem, desde as primeiras categorias do processo formativo até o profissional. Fincamos os dois pés na ‘ciência’, mas nos esquecemos da poesia.
A grande expressão da ordem no futebol moderno está na noção de estrutura. O que isso quer dizer? Quer dizer que, hoje em dia, nossa agenda parte da forma, não do conteúdo. Mas como cuidamos da forma em um jogo que é fluido, fugaz, em que tudo está, mas nada é? Em um tiro de meta, por exemplo, estamos todos cuidadosamente dispostos, amplitude e profundidade máximas, simetria quase que perfeita, atendendo perfeitamente aos postulados que construímos, ao longo do tempo, para guiar nossas tomadas de decisão. Evitamos ao máximo as armadilhas do imprevisível, até que vem o jogo e, ops!, vence nossa rigidez (uma, duas, inúmeras vezes!). Nas nossas entrevistas, citamos a esperança de jogarmos da maneira mais ‘organizada’ possível. Mas o jogo é ordem?
Não, o jogo não é ‘ordem’, ou melhor: a ordem do jogo é criada de maneira muito particular. Para o jogo, não se deve criar ordens para novas ordens. É preciso criar o caos! E o caos, aqui, se cria através do movimento. Não do movimento a partir da estrutura, mas (repare bem aqui) do movimento apesar da estrutura, a estrutura seguindo o movimento, a liberdade sobre a contingência. Ao marinheiro, não cabe domesticar os mares para então navegar, marinheiros se fazem em mar revolto! O jogo, da mesma forma, não é mar tranquilo: o jogo é tempestade e somos nós, marinheiros e marinheiras, quem devemos dançar ao som da chuva, da fugacidade, da impermanência e da rebeldia. Por que devemos ser simétricos? Por que não podemos lotar o setor da bola com três, quatro, cinco jogadores, deixando o lado oposto em flagrante inferioridade? Por que nossos jogadores precisam partir de uma dada posição, à revelia dos problemas do jogo? Quando daremos entrevistas (com algum sarcasmo) dizendo que esperamos que nossas equipes sejam as mais caóticas possíveis?
É claro que isso tem implicações metodológicas fundamentais. Quem desejar o movimento precisa cultivar a liberdade. Desde os primeiros passos do processo formativo, nossos garotos e garotas precisam sentir-se livres. É preciso deixá-los jogar! É preciso deixá-los descobrir as diversas funções dentro do campo, descobrir outras formas de expressão, com outras linguagens, sejam elas a linguagem do drible, do passe, do engano, do desmarque, todas elas! Ao invés de prender-se ao rótulo, ao carimbo (sou lateral! zagueiro! atacante!), nossos pequenos e pequenas precisam sentir-se jogadores, pessoas humanas em movimento, capazes de ir até os problemas do jogo, ao invés de esperá-los passivamente. Movimento.
Para as categorias maiores, não vale o mesmo?
Bom, retomamos este assunto em breve.
 

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