Sobre a filosofia do treinador

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Lucien Favre, hoje no Borussia Dortmund: mesmo com o tempo, refinar as próprias ‘filosofias’ segue uma arte. (Reprodução: Fox Sports Brasil)

 
Você e eu certamente já perdemos as contas de quantas vezes ouvimos, direta ou indiretamente, comentários sobre a ‘filosofia’ de um treinador. Às vezes, é o próprio treinador que fala da sua ‘filosofia’. Outras vezes, nós mesmos nos pegamos tentando descobrir ou construir a nossa.
Não sei vocês, mas acho a construção de ‘filosofias’ um tema dos mais interessantes: não por acaso, acabou se tornando meu objeto de estudo no mestrado. Passado algum tempo de estudo, julgo que posso apresentar algumas desconfianças, com as quais talvez os colegas se identifiquem.
Vou deixar abaixo três postulados, apenas para começo de conversa. Com o tempo, podemos refiná-los um pouco mais.

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#1: a filosofia do treinador não é estável
Existe uma ideia em que a construção da filosofia de treinadores e treinadoras se apoia, e essa ideia parece vinculada à uma certa noção de chegada: é como se encontrar a própria ‘filosofia’ fosse encontrar, finalmente, um local seguro – uma espécie de terra prometida. Existe um certo componente romântico e idealista na construção da ‘filosofia’ de treinadores, componente este que nos faz crer que a nossa ‘filosofia’ é estável, não se altera ao longo do tempo.
Acho este ideal bastante preocupante, por pelo menos dois motivos: o primeiro é porque ele é causador de sofrimento. Muitos colegas, treinadores e treinadoras, esperam que a construção da sua ‘filosofia’ termine em um lugar tranquilo, confiável. em que ele apenas irá desfrutar da sua própria companhia, como também seguirá um estado de fluxo profissional, com todas as decisões apoiadas por isso que, arbitrariamente, ele chama de ‘filosofia’. Mas quando isso não acontece, quando mesmo a mais bem construída ‘filosofia’ parece não exatamente dar conta da instabilidade do real, treinadores se sentem frustrados e incompetentes, como se o problema estivesse neles – não nos manuais que lhes apresentaram o caminho para o sucesso.
Isso nos leva, aliás, ao segundo problema: como esperar que qualquer ‘filosofia’ seja estável se as nossas próprias existências não são estáveis ao longo do tempo? Essa expectativa é altamente problemática, e combatê-la deve estar no horizonte de todos nós, que nos atrevemos aos dramas dessa profissão: há como desvencilhar o treinador da pessoa? É possível separar nossa ‘filosofia’ da nossa própria existência, da experiência que passa pela nossa vida cotidiana? Creio que não. Na verdade, acredito (desde Heráclito) que a vida está muito mais próxima do movimento, de um movimento que não cessa, de um movimento que foge ao nosso controle ainda que queiramos o contrário. E que este movimento faz com que qualquer existência seja bastante instável. E isso não é ruim.
O mesmo vale para as ‘filosofias’.

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#2: a filosofia do treinador é menos particular do que parece
Da mesma forma, a ‘filosofia’ de cada treinador parece ser uma forma clara de expressar um pedaço razoável da nossa subjetividade, como se ali nós pudéssemos colocar os nossos próprios traços, colocar quem somos. Mas hoje, se alguém me perguntasse, eu diria que esta hipótese está mais próxima do idealismo – ou seja, é onde gostaríamos de chegar. Mas ainda estamos distantes.
Explico: mesmo neste lugar onde julgamos expressar aquilo que é unicamente nosso, existe uma forte tendência a repetir, a replicar um discurso socialmente aceito que possa nos fazer pensar afirmativamente a respeito de um certo trabalho ou de uma certa pessoa. Por exemplo, é muito provável que vários treinadores coloquem a palavra intensidade como central nas suas filosofias, ainda que isso não seja exatamente uma inquietação deles próprios, mas sim um termo repetido (quase um clichê) neste momento histórico, uma forma razoável de ser aceito dentro dos grupos. Quem não fala de ‘intensidade’ ou quem não monta equipes ‘intensas’, supostamente ‘ficou para trás’ – ainda que não exista um relógio universal que diga quem está adiantado ou não e ainda que não se saiba ao certo do que se fala quando se fala de intensidade.
Este mesmo exemplo vale para uma série de outros termos, que são bastante bonitas e audíveis, mas também são ouvidas em vários lugares, por várias outras pessoas. Se eles também são usados por tanta gente, será que somos tão originais assim? Será que as nossas ‘filosofias’ realmente refletem as nossas distinções, aquilo que temos de diferente, ou será que estamos, sem perceber, na média, reproduzindo um certo discurso médio, que nos coloca muito mais próximos dos outros do que de nós mesmos?
Se sim, talvez as nossas filosofias sejam menos nossas do que pensamos.

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#3: a filosofia do treinador não é singular
Fiz isso sutilmente durante o texto, agora me sinto no direito de falar explicitamente: por que não passamos a falar ‘filosofias do treinador’, no plural? Numa linha próxima à que usamos no início deste texto, não há porque pensarmos que apenas uma filosofia (uma terra sagrada) dê conta de todos os conflitos, todas as ambiguidades e todo o peso com o qual precisam lidar treinadores e treinadoras em tamanhos momentos.
Um treinador que julga que sua ‘filosofia’ reside no ataque, na ênfase à organização ofensiva, pode perfeitamente ter de baixar as linhas em um jogo ou outro, às vezes porque o adversário é muito mais forte no ataque, às vezes porque o jogo mesmo se desenhou de outra forma – e não há problema algum nisso. Caso se mantenha vinculado, preso à única ‘filosofia’ que construiu para si, o treinador pode se sentir constrangido, proibido de abrir mão da sua ‘filosofia’, sob pena de trair a si mesmo. Mas quem disse que devemos, nestes casos, ter uma régua apenas? Por que as nossas ‘filosofias’ não podem ser tão plurais quanto nós mesmos? Por que não admitir que contextos, objetivos e experiências diferentes podem nos levar a ‘filosofias’ igualmente distintas? Ou porque não admitir que quem seremos amanhã comporta uma outra ‘filosofia’ em comparação a quem somos hoje?
Treinadores e treinadoras, a meu ver, precisam colocar sua filosofia no plural, precisam estar abertos, abertos às incertezas, ou então precisam trabalhar arduamente para construir filosofias que sejam amplas (sem serem genéricas), que sejam grandes (sem perder a especificidade), que sejam várias (sem deixar de ser uma). Caminhar nessa pluralidade não é simples, muito pelo contrário. Isso me lembra uma frase, atribuída ao poeta americano Walt Whitman, que faz todo sentido aqui: “Contradigo a mim mesmo porque sou vasto”.
Neste sentido, é preciso construir ‘filosofias’ que sejam vastas, que vão além.
Nelas, contradizer-se pode ser quase uma obrigação.
 

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