Sobre as oscilações inerentes ao processo

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David Silva: quando mais livre, uma atuação espetacular contra a Rússia, em 2008. (Reprodução: Diário AS)

 
Disse algumas outras vezes e posso repetir: talvez não exista problema mais importante a ser respondido no futebol moderno do que o problema do ataque. Outro dia, Fernando Diniz fez uma observação importante neste sentido, que às vezes nos recusamos a encarar. Decidir atacar bem, preparar-se para atacar, é muito mais difícil do que preparar-se para um jogo apenas defensivo.
Pois bem, de um tempo para cá tenho assistido alguns jogos da Espanha, do período 2008-12. Para ilustrar o meu ponto de hoje, gostaria de citar um jogo em particular, especialmente para discutirmos alguns dos limites do ataque. Me refiro à semi-final da Eurocopa 2008, Espanha x Rússia, vitória dos espanhois por 3 x 0. Você pode assistir ao jogo aqui.

***

Para todos os que acompanham futebol com alguma regularidade, alguns traços daquela Espanha são razoavelmente claros: um jogo, por diversas vezes, até mais horizontal do que vertical (conservação da posse), ao mesmo tempo em que bastante associativo; um potencial criativo admirável pelo centro do campo, um ataque que nascia geralmente de dentro para fora; mais tarde, uma certa subversão a partir da retirada do centroavante (Fàbregas como falso nove em 2012). Mesmo hoje, quando assistimos um jogo da Espanha, são características que não nos surpreendem.
Por isso, o primeiro tempo deste jogo a que me refiro, Espanha x Rússia, é tão chamativo. A mesma Espanha que já tinha Xavi, Iniesta e David Silva (apenas para ficar aqui) e que já construía um modelo a partir dos ajustes de Luis Aragones, mostrou-se uma seleção razoavelmente afobada, apressada, demasiado vertical, finalizando de média/longa distância além da conta, não exatamente pelo nervosismo (não aparentava), mas sim por alguma característica daquele jogar, do jogar específico daquela noite. Apenas por curiosidade, por volta dos 25 minutos, a Rússia tinha 57% da posse e 30 passes completados a mais – o que hoje seria quase impensável. Andrés Iniesta e David Silva, os meias abertos em um 4-4-2 (a trinca de meias não estava estabelecida à época), pareciam ter algumas restrições para movimentar-se por dentro, respeitavam mais o espaço pelos lados, tentando associações com Sergio Ramos (então lateral) e Joan Capdevila. Não por acaso, durante todo o primeiro tempo, a Espanha pouco ameaçou o gol adversário.
Mas leio no Zonal Marking (ótima referência, diga-se), uma nota importante: naquela Eurocopa, uma das dúvidas que rodeavam o processo de construção do modelo estava exatamente no ataque, particularmente na escolha ou não por dois atacantes – David Villa e Fernando Torres (lembre-se que Villa, à época, ainda não havia sido treinado por Pep Guardiola, o que certamente elevou seu repertório tático). Muito bem, com dois jogadores mais próximos da área, a Espanha perdia, portanto, um jogador metros atrás. Este se provaria um problema na estrutura daquele time, especialmente pela vocação irrefreável para construir por dentro, pela intermediária ofensiva, controlando o tempo do jogo pela bola e preenchendo os espaços entre as linhas adversárias pelo movimento dos meias e deste falso nove. Por isso, quanto menos meias, pior. Ao mesmo tempo, este pequeno engessamento de Silva e Iniesta, a que me referi acima, restringia bastante as intenções da Espanha por dentro. Como eu defendo há algum tempo, uma das formas de potencializar as linhas de força no ataque é exatamente pela liberdade de movimento dos pontas, pois isso, dentre outros motivos, traz enormes problemas aos laterais, especialmente para as equipes que marcam individual por setor. Mas este é outro assunto.
Por volta dos 30 minutos daquele jogo, David Villa acusou uma lesão muscular, que o tiraria não apenas da semi-final, como também da decisão. Aragones, ainda no primeiro tempo, optou pela entrada de Cesc Fàbregas.
E o desempenho da Espanha no segundo tempo foi brilhante.

Aqui, um exemplo da fluidez de que falávamos: David Silva (que saiu da direita), conduz a bola para o lado oposto, onde estão Capdevila – que recebe o passe – e Iniesta. Sergio Ramos, no centro, está voltando para a defesa. Fàbregas está mais acima na imagem, e Fernando Torres mais adiantado. A Espanha termina atacando em inferioridade numérica (5 x 7), mas o deslocamento de Silva contribui para que a jogada avance até um passe genial de Iniesta para Fàbregas, às costas do lateral-esquerdo, por onde quase acontece o segundo gol.

 
Tão logo voltou para o segundo tempo, a Espanha subiu o nível assustadoramente. Fàbregas, em comparação à função exercida por Villa, jogava alguns metros atrás, o que aumentava as chances de superioridades da Espanha na intermediária ofensiva. Mas, não bastasse isso, Aragones parece ter permitido que tanto Iniesta quanto David Silva pudessem circular livremente pelo campo ofensivo, de acordo com os espaços e o movimento da bola, abrindo os corredores para Ramos e Capdevila. E o resultado foi uma Espanha irresistível, com uma atuação genial de David Silva. Além das diversas oportunidades de gol (foram onze finalizações contra uma), falamos de uma equipe que saiu de uma semi-final europeia com uma confiança que certamente teria repercussões na decisão.
Repare que interessante: neste caso, o desempenho ofensivo da equipe cresceu não com mais atacantes – mas com menos. Quanto menos atacantes de ofício a Espanha usava (e considere aqui que David Villa, mesmo assim, foi artilheiro daquela Euro), mais forte podia se tornar o seu ataque. Em determinados modelos, pode ser que isso não se aplique (mesmo para um Barcelona, por exemplo, é saudável não preencher em demasia os espaços que podem ser atacados por Messi), mas para aquela equipe, naquele contexto, naquele modelo que se desenhava, era uma decisão acertada. Treinadores e treinadoras não trabalham com fórmulas. Trabalham com ideias e com afetos em um dado ambiente. E esses ambientes são sempre únicos.
Muitas vezes, escapa dos críticos exatamente essa dimensão de incerteza e ambiguidade a que nós, treinadores, estamos submetidos. Nada está definido, nada está em ordem – mas está tudo bem. Não posso falar dos pormenores daquela tomada de decisão, mas as mudanças (inclusive sutis) de Luis Aragones foram realmente admiráveis, e mostram não apenas que um modelo não nasce da noite para o dia, mas é construído ao longo do tempo – é um processo! Como também mostram que mesmo as grandes equipes, no mais alto nível, são confrontadas com oscilações dos mais diversos níveis. Para entender isso, precisamos entender de jogo.
Que sim, são resolvidas com o pensamento racional. Mas também precisam de uma intuição apuradíssima.
Sobre o que podemos falar em breve.
 

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