Yeferson Soteldo e a anatomia de um passe

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Soteldo: muitas informações num processamento intuitivo. (Foto: Reprodução/ESPN)

 
No último sábado, o Santos venceu o Vasco pelo placar mínimo, em São Januário, gol marcado pelo estreante Taílson. A construção do gol é belíssima – você pode assisti-la aqui. Por motivos estéticos, o maior destaque foi dado à linda assistência de Evandro.
Mas há um outro detalhe, que julgo ter passado despercebido: o passe de Yeferson Soteldo para Evandro. Não sei vocês, mas vi naquele passe um significado tão grande, uma tomada de decisão tão elaborada, e é sobre isso que gostaria que conversássemos hoje, com alguma profundidade.

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Para ilustrar meu ponto, acho interessante olharmos para o lance por pelo menos três maneiras: a construção do gol; as ações de Soteldo desde o recebimento da bola até o passe, e o instante exato do passe.
O primeiro caso talvez seja até o mais bonito dos três, porque nos mostra a jogada desde o início, primeiro de dentro para fora, depois de um lado para o outro, balançando a defesa do Vasco. Do ponto de vista defensivo, acho importante citar que Rossi parece estar uma linha acima do que estava no primeiro tempo, quando o Vasco se defendeu em 4-4-2 (Talles Magno e Marrony por dentro). Naquela estrutura, desconfio que este passe por dentro, que dá origem ao lance, não teria acontecido.
Em seguida, repare como Soteldo recebe a bola e, um ou dois segundos depois, já está cercado por dois jogadores do Vasco (Yago Pikachu e Andrey). Embora seja sabidamente reconhecido pela facilidade nas jogadas de 1 v 1, Soteldo dá dois ou três toques na bola e, logo na sequência, sem tocar na bola, parece acertar a passada – este é o primeiro ponto. Logo depois, de uma forma surpreendente, ele faz o passe para Evandro, na altura e velocidade exatas – este é o segundo ponto.
No replay fechado, peço que repare no gesto de Soteldo no instante do passe. Em condições normais, seria comum que este mesmo passe fosse feito com a chapa do pé (pensando em um cruzamento, por exemplo), mas não, o passe de Soteldo foi praticamente com o peito do pé, como se fatiasse a bola. Ainda nesta câmera mais próxima, repare como imediatamente após o toque, a bola passa a girar levemente para trás – quero falar sobre este efeito adiante. No gesto, uma leveza de quem não titubeou na tomada de decisão.
Vamos falar um pouco melhor sobre todas essas decisões.

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Que motivos fariam Soteldo passar a bola com o peito e não com a chapa do pé? De início, penso em cinco hipóteses:
– se tentasse passar a bola com a chapa, talvez Soteldo precisasse de mais um leve ajuste corporal, especialmente via pé de apoio, que o permitisse bater do lado de fora da bola, com a parte de dentro do pé. Seria um ajuste realmente mínimo mas, a meu ver, suficiente para que algum dos marcadores pudesse fazer a leitura e, eventualmente, tentasse uma interceptação. Batendo na bola como bateu, Soteldo reduziu em algumas frações de segundo o tempo entre o início do movimento e o contato com a bola (comparado ao tempo que levaria caso batesse de chapa);
– batendo na bola como bateu, Soteldo aplicou uma força que fez com que a bola chegasse ao destino algumas frações de segundo antes do que talvez levasse caso ele batesse de chapa, o que permitiu que Evandro recebesse a bola com espaço e tempo suficientes para tomar a decisão que quisesse – inclusive o passe que de fato deu;
– batendo na bola como bateu, pelo alto (e não rasteiro) talvez lhe tenha ocorrido que, naquela situação, os riscos de interceptação pelo chão eram potencialmente maiores, o que também faria com que os riscos em contra-ataque fossem significativos (e o Vasco tem alguma velocidade no trio Rossi – Marrony – Talles Magno). Portanto, era preciso encontrar uma forma de comprar o risco, mas diminuindo as possibilidades de perda da posse;
– fatiando a bola como fatiou, Soteldo escolheu por um efeito potencialmente mais fácil de ser dominado. Se batida de chapa, talvez essa bola ganhasse um tipo de giro, de um lado a outro, que faria dela potencialmente mais difícil de ser dominada. Da maneira como o lance se construiu, Evandro teve menos dificuldades para dominar a bola e tomar a decisão seguinte;
– tão logo Soteldo recebeu a bola, Andrey fechou um espaço importante ao seu lado, de modo que, caso ele decidisse passar a bola de chapa (correndo o risco de fazer um leve arco), provavelmente ela pegaria no volante vascaíno e não chegaria ao destino. Bater com o peito do pé foi um escape inteligentíssimo para resolver o problema posto.
Muito bem, as hipóteses são muitas, mas o ponto é: no caso de qualquer uma das cinco alternativas (ou das cinco juntas), Soteldo tomou a decisão em frações de segundo. Por isso, não me parece razoável dizer que Soteldo refletiu profundamente sobre todas aquelas coisas para tomar a decisão: ele apenas decidiu! Ou, se você preferir, foi uma decisão mais instintiva do que racional. Por contraditório que pareça, se pensasse muito, talvez Soteldo tivesse se equivocado.

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Quando digo que ele apenas fez, quero ser mais claro: a tomada de decisão do atleta, quando imerso no jogo, parece mais intuitiva do que racional. Algo próximo do que certa vez escreveu o Nietzsche, naquela já célebre frase ‘algo pensa em mim’.
Este algo que pensa no jogador (e que também pensa no treinador) vai ao encontro de algumas descobertas de áreas vizinhas ao futebol. Os colegas certamente já ouviram falar do livro Rápido e Devagar, de Daniel Kahnemann (Prêmio Nobel de Economia), que afirma que o funcionamento da nossa mente passa por dois sistemas: o Sistema 1 e o Sistema 2. O Sistema 1 ‘opera automática e rapidamente, com pouco ou nenhum esforço e nenhuma percepção de controle voluntário’, enquanto que o Sistema 2 ‘aloca atenção às atividades mentais laboriosas que o requisitam, incluindo cálculos complexos’. Da mesma forma, os colegas que leram o também famoso Daniel Goleman, especialmente naquele livro Foco, haverão de se lembrar da sua observação sobre os sistemas ascendente e descendente. Enquanto que o sistema descendente é ‘mais lento, voluntário e esforçado’ (análogo ao Sistema 1 de Kahnemann), o sistema ascendente é aquele que ‘opera em milissegundos, involuntário e intuitivo’ (análogo ao Sistema 2). Ou seja, decisões que exigem rapidez, especialmente num ambiente de tamanha complexidade (como os jogos em geral e os jogos contextuais, em particular) talvez estejam muito mais próximas da intuição do que da razão pura.
Todas aquelas deliberações que coloquei acima, que talvez tenham levado Soteldo a fazer o que fez, são razoavelmente simples de se fazer depois do lance, com tempo e algum distanciamento para reflexão, mas parece claro que o jogador não tem tempo e condições de fazer tamanhas coisas, naquele instante, via mente racional. Não sei vocês, mas as decisões de Soteldo, que em um ou dois segundos calculou intuitivamente tudo aquilo, me parecem uma maravilhosa expressão do potencial humano, uma grande ilustração das coisas que um sujeito talentoso, em um ambiente favorável, é capaz de realizar. Richard Dawkins, no conhecido O Gene Egoísta, observa que quando um sujeito lança uma bola no ar e a pega de volta, para fazê-lo ele provavelmente recorre a um processo análogo ao das equações diferenciais na matemática, elaboradíssimo – só que em um nível subconsciente. Ou seja, ele pode nem saber o que é uma equação diferencial, mas ele é capaz de fazê-la, de fato. Todos esses cálculos são intuitivos e parece haver neles e nessa intuição uma riqueza, uma sofisticação tão grande que, a meu ver, foram sendo levemente escanteadas, talvez pela nossa herança cartesiana, que confia tanto (às vezes até demais) no pensamento puro.
No futebol, falar dessas coisas pode causar um certo desconforto, pois há quem faça uma associação imediata entre a intuição e o inatismo. Mas no livro ‘Por um Futebol Jogado com Ideias’, dos professores Israel, José Guilherme e Garganta (que já citei algumas vezes e citarei novamente abaixo), há uma passagem interessante, que deixo a seguir: ‘(…) o termo ‘intuição’, não deverá, portanto, ser entendido enquanto qualidade ingênita, mas como consequência do modo como o sujeito organiza os diferentes níveis da sua relação com os fenômenos e como vai (…) atualizando as suas concepções e experiências’. Daí que a intuição não seja uma característica puramente inata e imutável, mas sim em mudança, suscetível ao mundo da vida, podendo ser refinada, por exemplo, a partir do treinamento de bom nível. Neste sentido, repare como as metodologias de treinamento são realmente fundamentais para o debate, porque um treino qualquer, feito de exercícios quaisquer, pode dar ao atleta estímulos quaisquer – mas não os estímulos de fato fundamentais para melhores decisões racionais e/ou intuitivas. O treino é ouro.
A grandiosidade de informações processadas por Soteldo num instante tão curto me pareceu um caso admirável, que mostra como a sofisticação intuitiva pode ser decisiva – e como está relacionada ao bom treinamento.

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Por fim, vamos pensar em outra coisa: esta ação de Soteldo, da qual falei até agora, foi uma ação técnica? Durante todas essas linhas, será que falamos de uma ação meramente técnica?
Bom, eu acho que não. A meu ver, trata-se de uma ação especialmente tática. Explico: quando falamos de tática, mais uma vez, não podemos confundir tática com sistemas táticos. Quando falamos de tática, falamos de uma ‘gestão (posicionamento e deslocamento/movimentação) do espaço de jogo pelos jogadores e equipes’ (ibidem, p.26). Nos Jogos Desportivos Coletivos, como é o caso do futebol (que ainda é jogo de invasão), não deveria nos surpreender que a dimensão tática seja de tamanha importância. Daí que as ações técnicas sejam meios para resolver problemas táticos – e não o contrário.
Em primeiro lugar, repare que Soteldo recebe a bola com os pés quase que sobre a linha lateral, espetado no setor esquerdo, provavelmente como uma instrução de Jorge Sampaoli. No momento ofensivo, os laterais do Santos (Victor Ferraz e Jorge) entravam em diagonal, jogavam como meias (basta ver a participação dos dois no lance do gol, os toques de letra), de modo que quem gerava amplitude no momento ofensivo eram justamente os pontas. No primeiro tempo, inclusive, Taílson teve a atenção chamada por Sampaoli porque, vez por outra, não abria o campo como o treinador gostaria. No último terço, podia centralizar (como de fato fez, no lance do gol)
Soteldo, como dizíamos, recebeu espetado não porque quis, mas provavelmente por ter assimilado as instruções do treinador (que, por sua vez, devem ser condizentes com um modelo de jogo largamente construído). Estando aberto, recebeu a bola com tempo suficiente para conduzi-la e avaliar, intuitivamente, a decisão que tomaria. Me chama muito a atenção a pequena correção na passada, feita logo antes do passe, porque ali ele pode encontrar o espaço necessário para bater na bola da maneira como bateu, exatamente no espaço entre Yago Pikachu e Andrey. Se tivesse recebido a bola em um espaço mais interior, talvez fosse obrigado a decidir por uma situação de 1 v 1, o que de fato ele faz muito bem, mas que provavelmente resultaria em outra jogada que não o lance deste gol.
Embora minha ênfase, neste texto, seja no passe exuberante de Soteldo, repare como o passe só foi possível porque está entre uma série de razões táticas, que mediaram o começo e, especialmente, o final deste lance.

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Espero não ter me alongado tanto, mas entendo que é um assunto bastante interessante para todos nós, que gostamos de aplicar e conversar sobre treinamento, metodologia, as relações tática-técnica, o jogo jogado e assuntos afins. Como sempre, estou mais do que disponível para conversarmos nos comentários e/ou pelas redes.
Continuamos em breve.
 

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