Outro dia, lia uma dessas histórias maravilhosas, que encontrei num livro cujo título me foge agora, mas que dizia que o sujeito, vamos chamá-lo aqui de Sujeito A, um desses intelectuais brilhantes que o Brasil já produziu, foi chamado para um debate com um outro sujeito, vamos chamá-lo de Sujeito B, do qual discordava violentamente. O debate começou com o Sujeito B falando o que gostaria de falar.
Reza a lenda que o Sujeito A pegou o microfone, cumprimentou os presentes, e começou dizendo que gostaria de refazer a fala do Sujeito B, que estaria cheia de equívocos, segundo ele. E refez tudo o que o outro rapaz havia falado, defendendo arduamente o seu ponto de vista, citando inúmeras referências e etc. Logo em seguida, disse ‘muito bem, agora posso começar minha apresentação’, e aí começou a defender o extremo oposto do que ele havia recém-defendido, discordando violentamente dele mesmo, com argumentos ainda mais sólidos, deixando o Sujeito B enxabido e a plateia admirada.
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Bom, infelizmente não tenho essa capacidade, mas gostaria que nos inspirássemos para um exercício parecido. Todos nós, em algum momento, já nos deparamos com essa discussão sobre as marcações individuais e por zona, sobre as diferenças da marcação individual pura e da individual no setor, essas coisas todas. O problema é que tenho sentido, especialmente em alguns comentários posteriores ao sucesso do Flamengo de Jorge Jesus, uma extrema negação das individuais, uma ideia de que as individuais são ultrapassadas, de que ‘na Europa ninguém marca assim’ (o que não é verdade) e coisas do tipo. Para defender a zonal, criou-se uma desconstrução dos encaixes.
Em primeiro lugar, gostaria de pontuar essa relação com o tempo. Não é o primeiro e não será o último assunto que cai nessa vala comum da ‘modernidade’, que diz que tudo o que não segue um determinado padrão seria portanto ‘ultrapassado’, ‘não teria estudo’ e etc. Aqui, gostaria de relembrá-los do que tratei em outros textos, particularmente neste: não há (e não haverá) uma fórmula mágica que responda aos problemas do futebol. O que existem são apostas. E o fato de uma aposta nascer após a outra não significa, necessariamente, que ela será melhor, porque a história não funciona a partir de encadeamentos lineares e sequenciais que vão melhorando a si mesmos. A história parece estar mais distante dessas coisas lineares e mais próxima de uma noção cíclica, de ciclos que vão e que voltam em si mesmos, de outras formas, de tempos em tempos. A história não se repete mas rima, diria alguém.
Daí que não faz sentido demonizar as individuais como ultrapassadas, uma vez que não há nenhuma qualidade, em si, que faça das zonais mais ‘modernas’. Em primeiro lugar, porque a ideia de ocupar os espaços em função do movimento da bola (ao invés de concentrar-se nos adversários) não nasceu ontem.Depois, porque da mesma forma como as zonais ultrapassaram a si mesmas, a partir do refinamento posicional, das próprias metodologias de treinamento e etc, as individuais também se alteraram – ou marcamos individual hoje como se fazia há vinte ou trinta anos? Não, os refinamentos posicionais (onde eu devo estar no exato instante prévio ao passe que levará a bola ao atacante que marco?) e mesmo de treinamento (especialmente do ponto de vista individual, em comparação com uma ou duas décadas atrás, com aumento das distâncias percorridas, do número de sprints por jogo, melhora razoável das capacidades físicas em geral e etc) também fazem com que as individuais tenham evoluído nelas mesmas, e talvez quando falamos em individuais hoje, falamos de uma coisa já bastante diferente do que falávamos há dez ou vinte anos. Equipes como a Atalanta, o Slavia Praga (sobre o qual já escrevi aqui, outro dia arrancou um empate enorme contra o Barcelona), o próprio Leeds United, treinado por Marcelo Bielsa, são exemplos competitivos, cada um no seu contexto, no atual cenário europeu.
Depois, poderíamos pensar naquela ideia, normalmente usada – e que foi apresentada dia desses como revolução – de que a marcação individual ‘faz com que a decisão do defensor seja sempre posterior à decisão do atacante’, dos movimentos do atacante, que um seja submisso ao outro e etc. De fato, a referência do defensor é o adversário, mas talvez a discussão não se encerre aqui. Por que quem nos garante, por exemplo, que precisamente a obrigação de condicionar o movimento do defensor não influencie a própria tomada de decisão do atacante? Ou seja: ao invés de tomar a decisão A, que talvez fosse a primeira numa outra condição, eu decido tomar a decisão F, justamente em razão da minha preocupação com o próprio defensor. Mas aí, amigos e amigas, não seria essa uma contradição em si? Porque se isso for verdade, então quem está submisso não é mais o defensor, mas sim o atacante, que talvez inconscientemente deixe de tomar uma certa decisão em benefício de outra, eventualmente menos adequada ao modelo de jogo ou mesmo à própria situação de jogo, mas que acaba respondendo a um determinado problema individual. Sem falar do incômodo mental que há na perda de um, dois ou mais duelos individuais (que causam efeito mental diferente dos equívocos resultantes de pressões coletivas).
Da mesma forma, não existe uma coordenação coletiva nas marcações individuais? Vejam as individuais por setor, por exemplo: supostamente, o encaixe só pode ocorrer quando o adversário entra em um determinado setor. Ora, a referência primeira não seria portanto zonal? Minha referência será o adversário, desde que ele ocupe um espaço no meu próprio setor, e desde que este setor também conte com a presença de um elemento fundamental chamado bola. Porque se sou lateral direito e a bola estiver lá do outro lado, pode ser que todos os meus companheiros naquele setor defendam individual – enquanto eu fecho a linha de quatro. Digo isso para lembrar aos amigos que as próprias referências de marcação não são absolutas, que elas dependem do problema apresentado pelo jogo e que, portanto, pode ser que os jogadores de uma mesma equipe precisem adotar, num dado instante, referências diferentes, que não necessariamente se opõem a um objetivo comum, concordam? As individuais podem ser principalmente individuais, mas isso não significa que serão apenas individuais durante todo o tempo, porque espaço e adversário não se separam facilmente assim.
Fico pensando o que diriam nossos colegas treinadores de basquete, handebol e futsal, que tanto recorrem às individuais (em modalidades eventualmente mais intensas do que o próprio futebol, diga-se), seriam todos eles ‘ultrapassados’? Será mesmo que nossos colegas da NBA ou da Euroliga jamais consideraram que o defensor estaria dependente da decisão do atacante? Ou será que existem outros benefícios, talvez não exatamente debatidos, que fazem com que prefiram as individuais apesar das qualidades da marcação por zona?
Provavelmente sim, e espero ter apresentado, nas linhas que passaram, algumas dessas qualidades das individuais.
O que, lembrem-se do início, não significa que eu concorde com elas…