Vocês sabem que o debate sobre futebol, como o debate sobre qualquer outra coisa, é uma questão de narrativas. Quem controla a narrativa, controla o debate. Como disse certa vez o Don Draper, personagem principal dessa brilhante série que foi Mad Men: if you don’t like what’s being said, then change the conversation – se você não gosta do que está sendo dito, mude o assunto – em tradução livre.
Digo isso porque, como já escrevi aqui e aqui, muito do que se vende hoje em dia como futebol ‘moderno’ talvez não o seja de fato, ou talvez seja, na verdade, apenas reflexo de uma ou de algumas novas narrativas, a partir de outras palavras que vão se colocando no debate. Vejam o caso do rondo, por exemplo: especialmente depois dos históricos resultados esportivos obtidos pela Espanha – e repare aqui como geralmente o debate não está bem na esteira dos processos em si, mas dos resultados subjacentes a eles, nós começamos, aos poucos, a não mais falar que fazemos bobinho, ou que jogamos bobinho, como se não tivéssemos jogado bobinho a vida inteira, mas sim que fazemos rondos, que em todos os nossos treinos há rondos, e aí falamos da importância pedagógica dos rondos e etc.
Neste texto, gostaria de defender rapidamente duas coisas: uma que, na minha modesta opinião, bobinho e rondo são coisas diferentes, o que significa que não são termos automaticamente substituíveis e que não podem ser confundidos um com o outro. Ao mesmo tempo, gostaria de falar não apenas do uso, mas de uma própria defesa do bobinho enquanto palavra, e da importância do bobinho na articulação das nossas próprias narrativas sobre futebol.
Por várias vezes, inclusive dentro de campo como treinador, percebi um certo incômodo, ora de atletas, ora de outros atores envolvidos no processo, quando usei o termo bobinho – ao invés do termo rondo, por exemplo. Hoje, olhando com um certo distanciamento, sinto que esse incômodo tem uma origem dupla:
1) como está no diminutivo, parece que falar ‘bobinho’ significa falar de algo menor, inferior, desimportante, secundário, dispensável. Isso não deixa de ser interessante, porque como nossos processos de treino são fruto das narrativas que os alimentam, é claro que nos damos cada vez menos o direito de usar palavras supostamente menores, desimportantes, dispensáveis, porque nos nossos processos de treino, nós nos sentimos cada vez mais pressionados a aparentar – ainda que seja apenas e tão somente uma aparência – que estamos comprometidos com isso que se vende como ‘moderno’, ou mesmo com o que está associado à suposta ‘modernidade’ de determinados países europeus, e aí não surpreende que nós adotemos os nomes compostos, ou que falemos de pressing, de box-to-box, de pivotes e etc, ainda que o nosso idioma tenha palavras capazes de substituí-las. A partir da negação dos diminutivos, por exemplo, não surpreende que nos percebamos cada vez mais sisudos, com processos de treino tão sisudos que soam quase como laboratórios científicos – ainda que nem sempre fruto de ciência boa, e não por acaso também jogamos, vez por outra, um futebol sisudo, muito sério, muito ‘organizado’ – a partir de um entendimento bastante curto do que pode ser a ‘ordem’ no futebol, e que não raro se mostra contraído, pressionado, estéril, às vezes vazio.
2) no caso do bobinho, além de um termo genuinamente nacional e no diminutivo, ele ainda faz, obviamente, referência ao bobo, ou mais especificamente a um certo sujeito que é bobo – ou, no caso do jogo, que está como bobo. Mas como estamos preocupados em nos mostrar sisudos demais, um pouco aborrecidos e às vezes mais preocupados com a letra do que com o pé, me parece que o simples fato de citarmos a palavra ‘bobo’ ou ‘bobinho’ gera um certo constrangimento, não apenas como se fosse algo menor e etc, mas também como se fosse um termo ligeiramente ofensivo, como se não pudéssemos sequer insinuar que um atleta esteja como bobo, ou possa vir a ser um bobo, o que imediatamente faz com que alguém nos advirta, explicitamente ou nas entrelinhas, que falemos dele não como bobo, mas como marcador, oponente, qualquer coisa do tipo. Repare que aqui há uma relação muito grande com o que escrevi outro dia, neste mesmo espaço, quando argumentei que o treino não existe para ser legal, e que quando nos preocupamos em fazer coisas sempre muito legais ou agradáveis demais – a partir, por exemplo, das palavras que usamos, talvez estejamos fazendo qualquer outra coisa que não educação.
O fato é que me parece claro que estamos devagarzinho negando o bobinho, que fez e faz parte de um pedacinho das nossas vidas, uma parte bonitinha de quando éramos pequenininhos – para usarmos palavras mais sofisticadas, com tons de estrangeirismo, como é o caso do rondo. O rondo é, basicamente, o jogo clássico de manutenção da posse dos espanhois, que passou a ser mais citado e cultuado, como eu mesmo já disse anteriormente, a partir dos resultados esportivos da primeira década deste século – curioso que, após tantos e tantos resultados esportivos do Brasil ao longo do tempo, não me lembro de nenhum país que tenha importado, nas suas narrativas, o bobinho – mas também a partir das práticas e dos discursos de um exímio treinador como Pep Guardiola, ou de uma geração de jogadores que dominaram a posse com maestria, como foram Xavi, Andres Iniesta, Xabi Alonso, Sergio Busquets, Cesc Fabregas, David Silva, o próprio Thiago Alcântara e etc. Mas há um ponto muito importante: na minha modesta opinião, bobinho e rondo são coisas diferentes.
Em primeiro lugar, o simples fato de chamarmos o bobinho de bobinho já deixa claro que se trata de um jogo genuinamente brasileiro. Como vocês sabem, aliás, são poucos os lugares no mundo que usam termos e mesmo nomes no diminutivo, sendo o Brasil um deles. Salvo engano meu, no catedrático Raízes do Brasil, o próprio Sergio Buarque de Hollanda apresenta uma argumentação bastante particular para o fato de usarmos palavras e nomes no diminutivo, sendo uma expressão de um outro tipo de afeto que construímos por aqui. De qualquer forma, quando falamos alguma coisa no diminutivo (e falamos muitas coisas no diminutivo), basicamente falamos de um traço da nossa coletividade enquanto brasileiros. Negar o diminutivo, portanto, não deixa de ser uma negação da nossa própria cultura.
Ao mesmo tempo, o bobinho tem uma vinculação cultural muito forte para todos nós. Você, que lê este texto agora, provavelmente jogou futebol na rua, formou-se de alguma forma na rua – lembrando da rua, como já nos disse o professor João Batista Freire, como tudo aquilo que não é fruto de educação formal ou sistemática – de modo que é muito provável que todos nós tenhamos jogado bobinho. E uma das características centrais do bobinho, que sinceramente me chama muito a atenção, é que nós jogávamos o bobinho por jogar, de maneira descompromissada, nós nos sentíamos bem jogando bobinho, nós queríamos que o bobo continuasse como bobo e que nós não fôssemos o bobo, ao mesmo tempo em que nós também gostaríamos que o bobo, que às vezes estava como bobo há muito tempo, deixasse de ser o bobo e fosse para o outro lado da roda. Nós jogávamos bobinho pelo simples prazer de jogar, mesmo sabendo que o jogo tem sim um compromisso, às vezes implícito, às vezes não, com a vitória, mas nós só queríamos jogar, não queremos ser os estraga-prazeres, queríamos adversários de bom nível, queríamos jogos melhores e eventualmente mais difíceis. O ponto é que, a meu ver, jogávamos bobinho pelo prazer de jogá-lo.
O rondo, por sua vez, me parece ter uma outra natureza. O rondo me parece uma ideia muito mais utilitária do que o bobinho. Ou seja, quem joga o rondo, joga pensando em uma utilidade específica, em um certo fim, que de alguma forma se sobrepõe ao prazer do jogar. Não por acaso são tão grandes e repetidas as associações que fazemos dos rondos com a performance esportiva, justamente porque é a partir dela – e de nenhum outro lugar – que conhecemos o rondo, é ela que nos ilustra o significado do rondo, é a partir de livros de treinadores vitoriosos que lemos coisas e mais coisas sobre o rondo, por que fazê-lo, para onde eles vão, o que fazem e etc. E vejam bem, isso não é um problema: isso é fruto de uma dada cultura, em um dado tempo, com dadas intenções, e essa cultura, e esse tempo e e essas intenções não precisam – e nem querem ser – as nossas. Nós temos a nossa cultura, o nosso tempo, as nossas intenções. Não é preciso negá-las para reconhecer a cultura dos outros.
Se me permitem, reparem numa outra questão fundamental, ainda que um pouquinho mais sociológica: pelo menos para mim, é muito difícil não olhar para o rondo, tendo em conta o lugar de onde vem, sem lembrar das touradas tão características da cultura espanhola. Para muito além da questão ética das touradas, me chama a atenção que a dinâmica do rondo seja muito parecida com a dinâmica toureiro-touro, sendo este último o enganado, ludibriado, distraído, enquanto o toureiro, cuja mente não pode ser estéril e nem demasiadamente sisuda, cria armadilhas para, no último instante, enganá-lo definitivamente. Não tenho nenhum estudo mais aprofundado neste sentido, talvez nem queira ter, mas não deixo de pensar que existe alguma coisa na psicologia do sujeito espanhol que lhe faça admirar esse tipo de coisa, esse tipo de engano, essa forma mais utilitária de ludibriar que, portanto, tem um outro fim além dela própria, e talvez por isso seja, por um detalhe, bastante diferente daquilo que nos acontece por aqui. Sobre este assunto, escrevi pela primeira vez em 2018, num largo ensaio que produzi sobre a Espanha, à época treinada por Julen Lopetegui – que me parecia fazer várias touradas dentro do jogo jogado.
Por hoje, acho que estamos conversados. Este é um assunto que me interessa muito – não por acaso me estendi um bocadinho, logo voltarei a ele.
Seguimos nos comentários.