Sobre o jogo de futebol como um jogo de distração

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Não faz muito tempo, falamos aqui sobre algumas características do jogador inteligente. Num primeiro momento, escrevi um pouco mais diretamente sobre a capacidade de ler nas entrelinhas, e a importância disso no jogo jogado. Outro dia, usei como exemplo o gol do Jordi Alba no jogo entre Espanha x Itália, em 2012, para ilustrar meu ponto: lendo as entrelinhas, Alba viu além.

Hoje, gostaria de acrescentar uma outra característica importante do jogador inteligente, que é a capacidade de distrair. De distrair para atrair ou, até antes disso, de perceber o jogo de futebol como um jogo de distração, no qual estamos constantemente buscando distrair o adversário, sem perder de vista as nossas intenções coletivas. Deixem-me falar um pouco melhor sobre isso.

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Durante o período de quarentena, Daniel Alves fez uma live muito interessante com Bernardinho, treinador multicampeão no voleibol brasileiro e mundial. Num certo momento, Dani Alves relembra uma história de quando Guardiola disse, literalmente, que iria ensiná-lo a jogar sem bola. O próprio Dani diz não ter entendido – como assim seria possível jogar bem sem a bola? – afinal, é com a bola que jogamos futebol! Mas, na sequência, Guardiola teria ilustrado um pouco do que entende do jogo de futebol e, especialmente, um pouco do que pode ser o jogo de futebol quando pensamos a partir da distração. Segundo o próprio Dani Alves:

“Por exemplo, uma vez o Guardiola chegou pra mim, falou assim: ‘Dani, eu vou te ensinar uma coisa: vou te ensinar a jogar sem bola’. (…) Ele falou assim: ‘a bola tem que estar no pé do Messi, do Iniesta, do Xavi, porque eles são a distração. E você ataca o espaço sempre deixado por eles.’ Então eu comecei a entender ‘cara, eu não preciso estar com a bola no pé todo o tempo… eles precisam estar com a bola no pé todo o tempo!’ (…) Então é um jogo de distração (…) a bola distrai e quem é inteligente ocupa os espaços deixados.”

Quando pensamos no jogador inteligente, talvez fique subentendido que o jogador inteligente, de alguma forma, seja um tipo de protagonista, ou pelo menos tenha a responsabilidade de ser o protagonista, mas num jogo coletivo, com tantas coisas acontecendo ao mesmo tempo, não precisa ser necessariamente assim. O jogador inteligente pode muito bem não ser um protagonista com a bola, não porque não saiba ou não queira, mas porque entende que talvez outros atletas sejam ainda melhores com a bola do que ele, e que isso não vai limitá-lo, mas vai fazer dele ainda melhor do que é. Messi, Iniesta e Xavi – que não eram apenas eles, separados, mas as relações que faziam entre eles, juntos – decidiam muitos jogos, e justamente por isso atraiam tanta atenção dos adversários que, além de atrair, também eram capazes de distrair: abriam espaços para que os outros decidissem. Como dissemos antes, atrair para distrair.

Tenho trabalhado isso de uma forma bastante insistente com meus atletas já há algum tempo, especialmente nos jogos de manutenção da posse com restrição de toques. Vejam bem, quando fazemos um jogo de manutenção da posse – vamos supor um 6 v 6 num espaço de 40m x 30m – com um toque apenas na bola, é claro que ganhamos algum requinte de ritmo na circulação da posse, assim como refinamos a tomada de decisão, a importância do perfilamento o corpo e etc, mas também abrimos mão de algumas coisas, e uma delas é precisamente a possibilidade de distrair a partir do domínio. Num jogo de dois toques, por exemplo, fica muito mais claro o quanto a bola é uma isca, e o simples fato de dominá-la (bem) é capaz de atrair o adversário – exatamente para distrai-lo. O simples fato de retirá-lo de onde está em direção a bola pode abrir, às suas costas, o espaços de que precisamos para progredir. Domínio, atração, distração, passe.

Ao mesmo tempo, talvez o que também faça uma grande diferença para o jogador inteligente seja essa capacidade dupla, de tanto distrair para o outro, quanto de permitir, de acordo a situação do jogo, que o outro distraia para si. Nos dois casos, há uma ponte que os une: é preciso pensar no depois. Não é que a distração seja um fim nela mesma, é um meio para se chegar em algum outro lugar uma, duas, ou várias jogadas adiante. Neste sentido, a analogia com os jogadores de xadrez, que aparece logo nas primeiros linhas do livro Guardiola Confidencial – quando é relatado um encontro de Pep Guardiola com Garry Kasparov, é de fato muito verdadeira: o jogador de xadrez antevê diversos padrões do jogo, está pensando várias jogadas adiante e é capaz de fazer isso intuitivamente. É disso que também se trata o processo formativo: da capacidade de fazermos dos atletas tão atentos ao presente que são, inclusive, capazes de pensar repetidamente sobre o futuro sem distanciar-se dos problemas do instante. Não deixa de ser uma arte.

Como é uma arte todo o processo formativo – mas vamos falando sobre isso aos pouquinhos.

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