Epistemologia. O termo, que etimologicamente remete às junções do grego episteme (que significa algo próximo à conhecimento ou entendimento) e logia (sufixo associado ao saber e a ciência) não soa lá muito convidativa, dado o caráter científico – incutida em sua própria constituição – tido como denso, teórico demais para estar atrelado à práticas hipoteticamente objetivas como, por exemplo, o futebol. Perfumaria, dizem.
Mas necessária – e cheira bem.
No frigir dos ovos, a epistemologia é a ciência do conhecimento. Propõe entender como nós, mortais seres humanos, incorporamos saberes que nos parecem úteis para lidar com o cotidiano corriqueiro, o que inclui desde aqueles mobilizados para dar um laço no cadarço de um calçado até aos que se arriscam a tentar entender a teoria da relatividade. Fundamental para compreendermos, enquanto pedagogos e pedagogas, os distintos modos que fazem fulano ou ciclana aprenderem (ou não) algum conteúdo e como modulam suas crenças, concepções e valores sobre a vida vivida – e por tabela, o futebol.
Trata-se, no fim das contas, de ‘maneiras’ mais específicas de interpretarmos o mundo a partir, claro, das lentes que nos dispusemos a usar para enxerga-lo. Toda prática, afinal, detém alguma epistemologia. O ‘maneiras’, ali em cima, é mero eufemismo para caracterizar as grandes teorias que explicam essa apreensão do conhecimento – são três, mas fiquemos hoje como a mais antiga delas: o Inatismo.
Um sem número de epistemólogos e epistemológas planeta afora se debruçam a conceituar a teoria epistemológica inatista e os pressupostos histórico-filosóficos que as fundamentam. Há certo consenso entre todos e todas de que a palavra-chave do Inatismo poderia ser algo como determinado. Todo e qualquer conhecimento é estabelecido a priori, presente de origem divina, dado, dádiva, verdade absoluta, concebido à alma, enquanto lócus do intelecto, e manifestado exteriormente a partir dela. Conhecimento é sinônimo de dom e você que lute para descobrir o seu.
Quem não sonhou em ser um jogador ou uma jogadora de futebol? A pergunta, eternizada musicalmente por Samuel Rosa, é retórica, mas seu complemento pode, em algum momento da vida, flertar com o doloroso: ‘será que nasci para isso?’, como aparentemente aconteceu ao Prof. Alcides Scaglia. Como não concordar com Romário, o homem dos 1001 gols, que, na mesma frequência com que decidia jogos, não hesitava em se endeusar? Fora o escolhido por Ele para dar alegria ao povo pelo balançar das redes, portanto, não lhe coube mais nada na vida senão cumprir a ordem celestial.
Explicar a vida – que não é necessariamente vivida nesse caso – pela manifestação de dons e seu caráter determinista são ações típicas de quem veste a lente paradigmática analítica-sintética e tradicional. O dom, sob a perspectiva pré-moderna, dispõe de forte ligação com o sagrado. Não à toa, monarcas de origem ibérica (berço do sebastianismo) em séculos passados e autoridades da Igreja Católica, até hoje, sejam intitulados dessa forma. E que adquire, pelo pensamento moderno e positivista do Iluminismo, uma roupagem genética para justificar o talento nato.
O determinismo, então, materializa a busca pelo controle da alma, por meio de derivações pan-ópticas, para combater o imprevisível e o indesejável. Para tanto, não abdica da imposição de rótulos demonizantes, motriz de vários preconceitos arraigados pela sociedade ocidental, óbvio, reverberados no esporte: do futebol que não é esporte de mulher, o vôlei que não é modalidade de macho, o preto que não serve para catar no gol, nem para treinar, nem para nadar, porque ‘sempre’ foi assim, alguém quis, escreveu não sei onde. Que também é desmascarado nas fatídicas peneiras por um viés supostamente mais ‘dócil’, o da busca por talentos brutos pelo julgamento das capacidades esportivas através d’um simples olhar: a muito baixinha para jogar basquete, a alta o bastante para jogar vôlei, o da panturrilha grossa que não serve para o futebol, ao contrário daquele outro de canela fina.
Cruel, muito cruel – diria aquele narrador (para manter a tradição de referências noventistas por aqui).
Do ponto de vista pedagógico-esportivo, em qualquer contexto, o Inatismo tem consequências geralmente pouco sapientes na medida em que o(a) professor(a)/treinador(a) é o ser que detecta clinicamente quem é capaz ou não e que, no máximo, promove insights para o desabrochar dos dons. Não existem processos de ensino ou aprendizagem e as responsabilidades afetiva e formativa ficam, literalmente, ao deus dará.
O Inatismo, e sua orientação determinista, ignora por completo a Pedagogia, enquanto ciência da prática educativa e, a rigor, qualquer outro tipo de ciência. Segue impregnando a cultura esportiva no Brasil, dentre outros fatores, pela busca mística ao imponderável que rege algumas de nossas condutas – que atire a primeira pedra aquele ou aquela que nunca se utilizou de um ritual de superstição para torcer. Outro ponto passa sobre como pensam (ou não pensam) algumas lideranças políticas e esportivas por aqui. O anseio de que determinados valores e ideologias não podem ser, em hipótese alguma, questionados numa sociedade que vive de… questionamentos, são feitos pelo controle social e sua imposição de concepções, de forma até arbitrariamente autoritária, justificada por um teor inatista: eis o evocar do mito de que mitos existem.
Fosse um desses influenciadores digitais, desconfio que o Inatismo seria aquele sujeito endeusado por uns, tido como tóxico e passível de cancelamento por outros, mas que, movido pelo amor e/ou pelo ódio, teria, possivelmente, milhões de seguidores. Todos nós fomos e somos inatistas e essa afirmação não se dá apenas pela possível identificação ressoada em você que se identificou com algumas situações exemplificadas. A ciência, inclusive a voltada ao âmbito esportivo e, mais inclusive ainda, àquela ligada à subárea da Educação Física chamada Pedagogia da Esporte, tem trazido evidências claras do engajamento, digo, popularidade dessa epistemologia.
Ao Inatismo, por essas e algumas outras, não devemos conceder sua inquisição imediata – ou cairemos na armadilha da contradição – sem antes reconhecê-lo. Primeiro como decorrente de uma visão de mundo analítico-sintética, suprema e factível em determinado contexto histórico. Depois, como teoria que ainda detém enorme influência em nossas fundamentações, muito por oferecer explicações razoavelmente simples demais sobre os quês, comos e os porquês devemos aprender, crer e enxergar o universo que nos ronda, sem nos exigir algo a mais do que a resignação.
Amém.