Como articular filosofias de treinadores? – Parte I

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Não é preciso ir muito longe para ouvirmos profissionais, das mais diversas áreas, falando sobre o que chamam de filosofia de trabalho, do quão importante é construir uma filosofia de trabalho, ou mesmo de como a filosofia de trabalho precisa estar conectada, de alguma forma, à filosofia do ambiente – seja ele qual for. No futebol não é diferente, e de fato vira e mexe ouvimos falar da filosofia de um clube (às vezes confundida com a cultura do clube, com a identidade do clube e etc) ou, por arrastamento, da filosofia de treinadores e treinadoras.

Como alguns de vocês sabem, foi exatamente este o tema da minha pesquisa de mestrado, na qual estudei isso que se chama, na literatura estrangeira, de Coaching Philosophy. Tendo em vista os estudos presentes, ao lado de algumas das minhas próprias experiências e percepções como treinador, gostaria de apresentar um pouco melhor alguns dos caminhos a partir dos quais podemos pensar a articulação das nossas filosofias.

Neste texto, que dividirei em algumas partes, gostaria de compartilhar um pequeno retrato do que encontramos – professor Alcides Scaglia e eu – durante a pesquisa. Para abrir a série, vamos enfatizar uma tensão bastante importante nesse debate, embora também bastante sutil: a tensão entre o singular e o plural no processo de articulação de filosofias.

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Uma rápida passada de olhos no início deste texto, e você verá que, no título, usei o termo filosofias de treinadores, no plural, enquanto que, no primeiro parágrafo, usei o termo filosofia, no singular. Isso acontece por um motivo principal: filosofia, no singular, é o termo estabelecido na literatura até agora. Só que uma das minhas desconfianças, encorpada com o tempo, é que a palavra filosofia, no singular, não dá conta da grandeza do que fazemos na prática. Afinal, de uma maneira bastante discreta, a busca por uma única filosofia, no singular, imutável e definitiva, parece causar um certo tipo de pressão, uma ansiedade que, ao invés de auxiliar, se mostra pequena e contraproducente no processo de articulação das filosofias de um treinador ou treinadora. Vamos pensar um pouco melhor sobre essas coisas.

Embora seja um tema razoavelmente discutido e, em certa medida, razoavelmente desejado, uma das barreiras que me parecem claras quando falamos da articulação das filosofias de treinadores é a seguinte: nós gostaríamos de fazer mais do que fazemos. E é uma barreira compreensível, pois ainda que queiramos articular filosofias que digam quem somos, de fato, enquanto treinadores, treinadoras e profissionais do futebol em geral, ainda não estão exatamente claros os caminhos a partir dos quais isso pode ser feito. Trocando em miúdos: nos gostaríamos de articular as nossas filosofias – mas nós não sabemos ao certo como fazer isso.

Bom, como dissemos anteriormente, é comum falar das filosofias no singular, numa linguagem do singular, de um modo tal que fica subentendido que articular uma filosofia significa fazer um processo de reflexão tão grandioso, um raio-X de si mesmo tão profundo e tão perfeito, que só pode ter como resultado uma espécie de iluminação igualmente perfeita – seja por uma palavra, por um conjunto de palavras ou uma oração (nos dois sentidos do termo) – capaz de descrever inteiramente quem somos na nossa prática profissional (e na vida vivida), mas também de denunciar, de alguma forma, que aquela filosofia já estava ali, adormecida, hibernando, como se fizesse parte da gente e devesse apenas ser encontrada em algum outro lugar de nós mesmos.

Mas veja bem, se seguirmos esse raciocínio, teremos pelo menos dois problemas: em primeiro lugar, a margem de erro nesse processo é muito baixa – afinal, existe uma e somente uma filosofia capaz de dar conta da nossa prática. Ao mesmo tempo, são de alguma forma subestimados os movimentos que a vida faz com a gente, enquanto treinadores e na vida vivida. Se você preferir, é como se articular uma única filosofia, clara e definitiva, não considerasse suficientemente o fato de vivermos num mundo, de estarmos num mundo, de estarmos em movimento e, portanto, de sermos continuamente outras versões de nós mesmos, de um jeito que uma única filosofia, ainda que articulada com extremo cuidado, pode até dar conta de quem somos hoje, mas provavelmente não será capaz de descrever quem somos amanhã ou depois. Nem todo cálculo de vida é um cálculo de exatidão – é preciso dar espaço para o incerto.

Não por acaso, é tão importante considerar o papel da experiência nos nossos processos formativos. Para não nos estendermos muito na grandeza da palavra experiência, considere apenas que a experiência pode ser mais do que o tempo de prática sistemática em uma determinada atividade – pode ser, por exemplo, um acontecimento, um deslocamento tão forte da vida na nossa direção, que nos deixa uma espécie de marca, de ferida que faz com que simplesmente não sejamos mais os mesmos que éramos antes. A experiência nos leva justamente ao encontro daquilo de que falei acima: ela quer o movimento, ela nos faz diferentes, alheios, separados de nós mesmos, em formação contínua, em aprendizado contínuo, em ecdise constante. Pela experiência, uma única frase, por mais clara e definitiva que pareça, não é capaz de captar a diversidade do viver. Sabendo disso, e considerando que o plural, neste caso, é mais potente do que o singular, sugiro fazermos filosofias – ao invés de uma única filosofia.

Bom, acho que estamos de acordo que o plural desce melhor do que singular. Mas repare, por favor, que essa não é uma proposta para complicar as coisas – mas para facilitá-las. Isso significa que não necessariamente devemos pensar nas filosofias como a articulação de dezenas de frases ou orações que deem conta de quem somos a cada momento – não é disso que se trata. O que eu quero dizer é que as nossas filosofias podem sim caber em uma palavra, em algumas palavras ou em uma frase, mas de uma forma que estejam sempre em aberto, sempre em movimento, não são claras e definitivas, mas impuras e transitórias e – mais do que isso – são infinitas dentro delas mesmas, de um modo que seja possível não só admitirmos a diversidade das nossas filosofias, mas também admitirmos a diversidade que nos faz humanos, a pluralidade da arte de viver, de onde tiramos precisamente a matéria-prima das filosofias que somos capazes de fazer. Para além das nossas modalidades, existe a vida que se vive.

Sobre isso, me permitam citar três versos simples, mas muito bonitos, atribuídos ao escritor americano Walt Whitman. Eles dão conta de dizer o que eu gostaria por enquanto. Reparem, aliás, como a contradição não é necessariamente um problema:

Contradigo a mim mesmo porque sou vasto

Eu sou contraditório, eu sou imenso

Há multidões dentro de mim

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Portanto, como um primeiro passo nesse processo de articulação de filosofias, sugiro esse deslocamento, não mais comprometido com uma filosofia, uma frase singular, clara e definitiva, mas pelo contrário, um compromisso com as filosofias, plurais, transitórias e abertas, em movimento de acordo com a vida, em um constante renascer, decorrente do aprendizado da prática, da relação com os nossos atletas, dos ensinamentos do jogo, das plenitudes das nossas vidas. Filosofias entregues ao mundo, ao mesmo tempo em que conscientes da força de sermos outros e outras além de nós mesmos.

Seguimos em breve.

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