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Crédito imagem – Lucas Figueiredo/CBF

Muito embora todos nós, treinadores e treinadoras e profissionais do futebol em geral, estejamos nos preparando cada vez mais, muito embora nossas formações sejam cada vez mais recheadas, cada vez mais repletas de informações, eventualmente de conhecimentos (nem sempre de saberes), é claro que nos restam várias dúvidas, vários tipos de questionamentos sobre as nossas próprias práticas. Nós não sabemos de tudo, não saberemos, e as coisas de quem não sabemos nem sempre virão de um livro ou de um amontoado de livros, mas da vida que se vive, da maneira como vamos respondendo à vida que se vive – e portanto do sentido que somos capazes de dar à vida que vivemos todos os dias.

Sobre isso, tem me chamado muito a atenção, na minha própria prática como treinador, o caráter poético que de vez em sempre aparece no processo de treino. Neste momento histórico, em que estamos (ou pelo menos parecemos estar) cada vez mais submetidos ao método e cada vez mais distantes da arte, como se o fato de sentir, ao invés de apenas racionalizar, e o fato de fazer arte, ao invés de apenas e tão somente fazer o que nos diz o método, como se essas coisas fossem um erro, uma bizarrice – mais do que isso, como se pensar o futebol também a partir da arte fosse um retrocesso, como se o cultivar a arte, inclusive pela ampliação dos próprios limites humanos, fosse um delírio, ao mesmo tempo em que a obsessão pelo controle, em todas as suas manifestações, dentro e fora do processo de treino, fosse, essa sim, uma postura sóbria e elogiável. Curiosamente, às vezes sentimos que os delírios de controle da vida cotidiana parecem nos fazer menores e mais cansados, como se tudo o que a vida nos pedisse, para que de fato possamos nos sentir mais vivos, fosse um pouco mais de abertura, de des-controle – de uma forma que novas ordens fossem surgindo naturalmente.

No caso do treino, particularmente me chama a atenção o seguinte: por algum motivo, temos a tendência de acreditar, explicitamente ou não, que um determinado treinamento será tanto melhor quanto mais planejadas, organizadas e sistematizadas estiverem as suas variáveis, sejam as de um microciclo semanal, de um mesociclo, seja de uma sessão de treino, seja de um determinado exercício dentro de uma determinada sessão. Não raro, eu mesmo (e imagino que vários de vocês) me vejo numa espiral de rabiscos e observações que me permitam antever o máximo de possibilidades sobre as coisas que gostaria de propor, ou então que me permitam não apenas tirar o máximo de uma dada atividade, ou de uma dada sessão, tirar tudo aquilo que for possível, como também – e aqui está um ponto fundamental – que permitam que os atletas saiam da atividade mudados, de preferência nitidamente mudados, de um modo que as suas próprias maneiras de sentir e jogar o jogo passem a ser diferentes daquele instante em diante, cristalizando o aprendizado que me sinto na obrigação de estimular numa dada sessão ou ao longo do processo.

Por outro lado, não é possível pensarmos a educação (e portanto, o processo de treino) apenas e tão somente a partir dos nossos desejos de controle. Vocês sabem que uma das variáveis inequívocas da aprendizagem é a subjetividade do aprendiz, o que significa que a apreensão de um determinado jogo, por mais detalhado e meticulosamente planejado que seja, não depende das nossas vontades, como treinadores e treinadoras, mas depende das relações que cada atleta, na imensidão da sua particularidade, é capaz de criar com o jogo que se joga. E mesmo as relações do atleta com o jogo que se joga, mesmo esse tipo de relação aparentemente deliberada, dependente do próprio atleta, na verdade também sofre influência de todo um mundo interno, dos infinitos todos que residem em cada um, de um modo que a constituição de um saber depende sim, em parte, das nossas próprias vontades, enquanto mestres e aprendizes, mas depende também (e talvez especialmente) de um campo de variáveis que estão para muito além do que podemos ver – por isso a importância da **sensibilidade pedagógica**, porque há coisas que nos aparecem mais ao coração do que aos olhos – e, justamente por isso, muito além do que podem agir – são variáveis que carregam uma vida própria.

Por isso, penso comigo até que ponto, principalmente de um ponto de vista pedagógico, o melhor treino seja aquele mais criterioso, meticuloso, absolutamente detalhado, destrinchado, ‘limpo’, ou então se além do critério, do método e da limpeza também não é preciso, dentro do processo de treino, separar uma parte para a incerteza, o descontrole, o improviso, um certo grau de ‘sujeira’, num sentido informal do termo, como acontece exatamente no jogo que se joga: se o jogo é um espaço, por natureza, de descontrole, de imprevisibilidade, de equilíbrios dinâmicos (para usar o termo do Capra), se o jogo é um espaço de caos sobre ordem sobre caos, talvez também seja necessário que os nossos processos de treino, cada vez mais metódicos, mais rígidos, mais inflexíveis, se abram a um certo grau de impureza e de poesia. Como fazer isso? Não sei, não posso dar respostas universais. Ao menos na minha prática, tenho sentido o seguinte: alguns dos melhores treinamentos não são necessariamente os mais regulados e obsessivamente controlados, mas justamente aqueles a partir do quais, por vontade minha, ou por algum elemento do acaso, é preciso ter um grau de improviso (uma mudança de regra, um ou mais atletas lesionados, uma solução inesperada etc etc). Quanto mais nos abrimos ao jogo, me parece que mais ele nos responde.

E talvez por isso valha a pena considerarmos, de uma forma bem subjetiva, de acordo com quem somos e quem gostaríamos de ser, como podemos dar um verniz de poesia ao processo de treino, como podemos acrescentar uma camada de arte ao método, e de que forma isso pode nos fazer não apenas melhores treinadores, treinadoras e profissionais do futebol, como também pode atingir precisamente aquelas camadas de aprendizagem, às vezes tão duras e monótonas, de que falávamos no começo deste texto.

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