Estruturas pedagógicas informais e a formação do futebol na história

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O pontapé inicial será junto ao do futebol na sua fase moderna, isto é, na segunda metade do século XIX quando suas regras foram padronizadas, permitindo a realização das primeiras competições em âmbito nacional e no primeiro momento em um âmbito legal o rompimento brusco com o rúgbi.

O futebol até a segunda metade do século XIX era “um arranjo de códigos tribais mais ou menos semelhantes preferidos pelas diferentes escolas públicas” (Giulianotti, 2002). Foi primeiro com a fundação da Football Association (FA) em 1863 e posteriormente com o rompimento institucional com o rúgbi em 1871 e a fundação da Rugby Football Union que o futebol toma uma forma reconhecível com o quê conhecemos hoje.

A partir da década de 1870 as instituições de ensino começaram a dar espaço para clubes formados também por comunidades religiosas, associações de classe média e operárias. É importante lembrar que se trata de um período em que o Império Britânico era aquele que “nunca dormia”, tão vasta era suas dimensões, com territórios em todos os cantos do planeta. Sem o poderio dos britânicos, é difícil imaginar o futebol alcançando o mundo inteiro no século XIX e se consolidando, afinal os ingleses não dominavam apenas territorialmente, mas também através da cultura. Entender isso é fundamental para perceber um papel cultural dos clubes aristocratas ingleses.

Retornando mais uma vez ao Giulianotti, ele aponta o zelo missionário de Charles W. Alcock, secretário da FA por 25 anos. Com ele, o “jogo do drible” foi introduzido por toda a Grã-Bretanha. O drible faz referência ao dribble em inglês, que faz referência mais à condução da bola do que a algum tipo de truque com a bola para superar adversários.

A ideia de jogo era que o jogador em posse da bola a conduzisse o máximo possível para frente, com o passe sendo a última alternativa. Assim também eram as regras na Inglaterra; a regra 6, precursora da lei do impedimento, até 1866 só permitia passes para os lados e para trás. Em 1866 foi introduzido o impedimento mais similar ao atual, mas com 3 jogadores ao invés de 2 para dar condição. Conduzir solitariamente, encarando os vários adversários era sinal de masculinidade, qualquer ideia relacionada à defesa e a passe era considerada subalterna e afeminada.

Nas escolas públicas, espaços de educação formal reservado às elites, eram repreendidos aqueles que raciocinavam demais. Jogar futebol era abaixar a cabeça e correr para frente.

“Um jogador de primeira classe (…) jamais perderia a bola de vista, ao mesmo tempo mantendo sua atenção dedicada a vislumbrar os espaços nas linhas inimigas, ou qualquer ponto fraco na defesa que possa dar a ele uma chance favorável de chegar ao cobiçado gol adversário.” (The Times, 1870)

Junta-se a isso às ideias de Muscular Christianity, originário da Inglaterra no mesmo século XIX e que reforçava o patriotismo, disciplina, masculinidade e beleza através do atletismo, com o objetivo de controle total do corpo dos garotos.  Acreditava-se até que a prática dos esportes impediria os jovens de “se tocarem”.

Era um jogo extremamente físico, um kick and rush puro, repleto de duelos individuais que exigiam muita força, resistência e velocidade. A valorização da vitória do indivíduo. Essa era a base da estética aristocrática do Império Britânico: o homem britânico superior. Quando um clube aristocrático derrotava um clube operário era uma forma de defender os valores da elite, e quando um time inglês derrotava algum estrangeiro em alguma excursão, era a vitória do Império, reforçando para o resto do mundo a superioridade física e de valores dos ingleses. Através do futebol tinha-se a “reprodução da estrutura das relações de força e das relações simbólicas entre as classes” (Bourdieu, 1982).

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Este sistema pedagógico informal – vamos assim chamar – não era o único na Grã-Bretanha, apesar de ser o de maior predominância por uma relação de poderes entre classes. Podemos fazer uma divisão entre as regiões de predomínio de cada sistema. No sul, próximo da capital Londres e onde havia maior concentração dos poderes e de escolas públicas, o predomínio era deste sistema já visto. Ao norte, e em especial na Escócia, onde se concentravam cidades industriais e por consequência, muitos operários, marinheiros e trabalhadores livres, as realidades eram outras.

Os trabalhadores jogavam o jogo que Kant poderia chamar de desinteressado, ou seja, ao contrário dos homens da religião e aristocratas, a classe operária não se preocupava em – intencionalmente – passar conjunto de valores adiante que fugissem do âmbito do jogo. De certa forma era o jogo mais lúdico, que se preocupa com as preocupações de jogo. Em seus momentos de folga no trabalho, queria jogar e óbvio, ganhar seus jogos assim como os aristocratas também queriam ganhar, mas sem se preocuparem em propagarem valores através do jogo.

Daí surgem as primeiras táticas; não só os primeiros esboços para esquemas táticos diferentes (saindo do 1-1-2-7 para 1-2-2-6 e 1-2-3-5) mas também a preocupação em técnicas e movimentos táticos que buscassem melhorar o rendimento da equipe visando a vitória. Surgiu o jogo do passe, em contraste ao jogo do drible (ou jogo da condução), com jogadores buscando se aproximarem para fazerem um jogo associativo.

Os jogos de futebol entre os trabalhadores eram o momento do ócio. Não entenda este momento um simples “não fazer nada”, associando-o à vadiagem. O ócio é o momento do fazer nada, mas que é também fértil para reflexão e criação, ou lembrando Luiz Antônio Simas, um momento de síncope; quando há uma quebra repentina de ritmo, para então recomeçar a batucada, em outro ritmo. Muitas formas de interpretar o mundo e de se organizar (como o surgimento de sindicatos) surgiram com uma bola sendo a razão das pessoas se juntarem.

Não é de se estranhar que deste meio venha o jogo do passe e em contrapartida o jogo da condução tenha também sua origem distinta. Em ambos os casos, suas condições materiais de existência fomentavam um determinado habitus, isto é, “esquemas de percepção, apreciação, e ação adquiridos pela prática e colocados em obra no estado prático” (Bourdieu, 1972). A internalização e naturalização de símbolos implica em entendermos que a cultura é mais do que um reflexo mistificado e abstrato da realidade material, mas também instância constituinte da realidade. O habitus é, portanto, “necessidade feita virtude” (Bourdieu, 1972).

Na Escócia as regras permitiam desde muito cedo os passes sejam para onde fossem. O impedimento no início já considerava dois adversários como estamos habituados, mas somente era impedimento nos últimos 15 metros do campo de ataque. A primeira partida entre as seleções de Inglaterra e Escócia aconteceu em 1872 em Londres, os escoceses já eram familiarizados com o jogo do passe. Assim, dominaram os ingleses nos primeiros anos do confronto, com 10 vitórias e apenas 2 derrotas nos primeiros 16 jogos. Depois o profissionalismo foi tomando forma, jogadores escoceses iam jogar na Inglaterra e os ingleses foram se adaptando – ao menos parcialmente – ao jogo do passe e começou a ser dominante nos confrontos contra os escoceses. Um pouco disso é visto na série The English Game, disponível na Netflix.

Até hoje estruturas pedagógicas informais formam os mais variados jogadores, que ao mesmo tempo que preservam suas individualidades e maneiras próprias de interpretar o seu entorno, o fazem a partir de um conjunto de relações, com cultura própria. O futebol é um fenômeno que não permite a ausência de significados, às vezes eles estão explícitos e podem gerar simpatia ou repulsa, outras vezes estão em um simples passe ou drible, mas estão lá.

Bibliografia

Bourdieu, P. (1972). Esquise d’une théorie de la pratique. Genêve: Droz.

Bourdieu, P. (1982). A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva.

Giulianotti, R. (2002). Sociologia do futebol: dimensões históricas e socioculturais do esporte das multidões. São Paulo: Nova Alexandria.

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