Crédito imagem: Tobias Hase
Embora análises conservadoras no futebol sejam tendenciosas a defender que jogadores permaneçam atuando em uma única posição ao longo de suas carreiras, a natureza dinâmica e interativa do esporte pode favorecer leituras mais flexíveis (tanto para quem desempenha as ações dentro de campo como para quem enxerga margens de crescimento fora dele). Talvez pela falta de alternativas na iniciação, pelo contexto que os acompanha durante o processo de formação ou até mesmo pelas circunstâncias com maior pressão no regime profissional, muitos jogadores demoram a encontrar o seu diferencial competitivo devido a repetições automáticas em uma posição rígida, que consequentemente podem limitar o rendimento esportivo.
No entanto, se nos afastarmos de um julgamento estático, será que as supostas ‘funções de origem’ refletem o real potencial de cada indivíduo? Se o jogador em questão puder opinar, quais seriam as suas preferências, a sua leitura, o conhecimento sobre as suas principais valências e lacunas? Seria possível estimular o desenvolvimento de jogadores polivalentes por meio de oportunidades em diferentes funções?
Na literatura acadêmica, enquanto estudos sobre a prática deliberada investigam o engajamento precoce ou tardio em uma modalidade específica (por exemplo, no futebol), questionamentos em torno do volume e qualidade de treinos debatem a especialização e a diversificação em atividades esportivas. Isto é, ao se envolver com o esporte, um indivíduo pode se aprimorar ao praticar exclusivamente uma única modalidade e/ou se desenvolver por meio da participação em distintas atividades. Não se trata apenas de um acúmulo de horas em treinamento, mas sim da variedade, tipos e intensidade das experiências do praticante, que também é influenciado pelo seu próprio grau de motivação, disposição e comprometimento. Dez mil horas para quê? Como? Onde? Com quem? Contra quem?
Transportando o raciocínio ao campo de futebol, independentemente da idade ou histórico, todo e qualquer jogador apresenta margens de evolução, recuperação e adaptação, pois sua curva de aprendizado não é fixa, tampouco estática. Ainda que o processo de identificação, maturação e desenvolvimento de talentos seja gradual, não-linear e específico a cada indivíduo, conforme as etapas de transição se aproximam do âmbito profissional a tendência é que oportunidades, tentativas e alternativas para testar variações sejam cada vez menores. Porém não impossíveis.
Vamos a alguns exemplos para facilitar a compreensão.
Ao seguir os passos de seu antecessor Philipp Lahm no Bayern de Munique e na seleção alemã, Joshua Kimmich se destaca atualmente como um dos principais meio-campistas da Europa, mas também permanece apto a atuar como lateral (outrora sua posição primária), adaptando suas valências na construção ofensiva e na retaguarda defensiva dependendo das exigências de cada função. Um de seus antigos companheiros de equipe, David Alaba elevou a versatilidade a níveis ainda mais admiráveis com a sua capacidade e conhecimento em se ajustar como lateral, zagueiro ou meio-campista. Caso semelhante ao do brasileiro Fabinho, um dos atletas fundamentais do recente ciclo vitorioso do Liverpool. Na Inglaterra, João Cancelo e Oleksandr Zinchenko também oferecem maior flexibilidade ao Manchester City. E retornando à Alemanha, Christopher Nkunku encontrou sua ascensão esportiva no setor ofensivo do Red Bull Leipzig após a concorrência em Paris limitar suas aparições no meio-campo e no ataque.
A narrativa em questão obviamente passa longe de argumentar que todo jogador deva trocar de posição, pois as limitações de tempo reduzido, menor confiança e aversão aos riscos também dificultam eventuais inovações na camada profissional. Mas mesmo em uma única posição, a abertura ao senso crítico e criativo pode ajudar alguns jogadores a se tornarem especialistas em suas funções mediante o aprimoramento de sua percepção visual, coordenação motora e atenção às demandas de jogo da equipe.
De forma resumida, ao questionar as necessidades e pontos de melhoria para uma posição específica, despertamos o questionamento sobre as condições técnicas, táticas, físicas e psicológicas do indivíduo que executa a função, aliado às interações e características dos seus companheiros de equipe, além da capacidade de leitura das ações dos adversários. Vale lembrar que o futebol é um esporte de contato coletivo, marcado por constantes deslocamentos, coberturas e reorganização espaço-temporal.
Um centroavante, por exemplo, deve se adaptar a situações com intensa marcação, pouco espaço ou tempo disponível dentro da área, que exigem um rápido raciocínio no seu deslocamento, priorizando o equilíbrio na mecânica para finalizar a jogada com qualidade técnica. Quando o mesmo centroavante recebe um passe ou lançamento de costas para o gol, a antecipação na jogada pode afastá-lo dos defensores, permitindo que ele retenha a posse de bola girando o corpo ou facilitando a próxima jogada com um passe a um dos companheiros que visualizam o ataque de frente. Por fim, se o próprio centroavante conduz a bola em direção à área adversária, a projeção da sua corrida pode manipular os defensores a reagirem no momento em que ele optar por um passe, drible ou aceleração prévia ao chute. Em cada exemplo hipotético há variações para o centroavante executar os fundamentos técnicos, medir a velocidade necessária em seus movimentos e prever as possíveis consequências de suas escolhas táticas. Tudo em questão de segundos, considerando as interações ao seu redor.
Poderíamos ilustrar outros casos, mas a reflexão também fica a critério de como cada leitor interpreta o jogo. Talvez o ângulo mais importante seja espelhar pensamentos que traduzam a dinâmica interativa do futebol, cujas situações reais exigem versatilidade conforme o jogo acontece. Por exemplo, muitas vezes um atacante se ajusta como lateral ao acompanhar uma transição defensiva, zagueiros ajudam o setor ofensivo em oportunidades com bola aérea, enquanto meio-campistas monitoram deslocamentos com e sem bola para definir em que setor do campo devem agir ou reagir. Hoje, aliás, até mesmo goleiros apresentam maestria ambidestra para participar ativamente da construção de jogadas, representando (possivelmente) a posição que mais evoluiu na última década.
“Não é o mais forte que sobrevive, nem o mais inteligente, mas sim o que melhor se adapta às mudanças.” – Charles Darwin
A versatilidade atrai benefícios individuais que fortalecem o diferencial competitivo de quem a protagoniza. Ainda assim, o real triunfo é coletivo.