Por: João Batista Freire
Em 2008 escrevi um capítulo de livro intitulado Um mundo melhor, uma outra educação física, em que afirmei que “… a reinvenção do futebol à brasileira deu-se à revelia da educação física. Nossos jogadores foram forjados nos campos de várzea, nos pequenos espaços de areia, terra ou grama que grassavam pelo Brasil afora.” p. 58 (Freire, 2008). Lá pelos anos 1980, creio, o dramaturgo brasileiro Plínio Marcos disse que o futebol brasileiro estava se acabando e era a ginástica (educação física) que estava causando o estrago. De qualquer maneira, era preciso destruir o modelo brasileiro e sul-americano, caso contrário, ele prevaleceria por muito mais tempo. Escrevi, na época: “O antídoto para essa cultura tão típica já existia: era preciso fazer com que a educação física assumisse o futebol, prática para a qual sempre fechara os olhos. E ela assumiu, seguindo os sábios conselhos das ciências modernas que orbitavam ao seu redor (a fisiologia do esforço, a biomecânica etc., as chamadas ciências do esporte).” P. 59 (idem). O futebol genuinamente brasileiro ainda resistiu por algum tempo, mas, no início dos anos 2000 dava sinais de cansaço. Sempre fomos bombardeados por um colonialismo cultural que nos chega pelas matrizes curriculares, pelas ciências duras de fundo europeu, pelo cinema norte-americano, jornais e redes sociais, entre outros meios. É difícil resistir a isso. Esse colonialismo cultural poderia ser chamado de colonialidade, termo usado por vários autores, entre eles o peruano Anibal Quijano (Quijano, 2019), um tipo de dominação que sucede o colonialismo físico, aquele que tinha a presença do colonizador nos cargos definidores da política, da economia e da cultura.
Aqui e ali surgiam jogadores que insistiam em jogar ao modo brasileiro, porém, de modo geral, a orientação passou a ser: tornar-se cada vez mais forte, cada vez mais defensivo, cada vez mais disciplinado a um sistema rígido de posicionamento em campo. E nada de correr riscos, como se o jogo, por definição, não fosse um fenômeno movido pelo risco, pela imprevisibilidade. O medo, nesse tipo de jogo, é a referência. A ousadia é a bruxa que deve ser levada à fogueira. E foi assim que, aos poucos, nosso futebol passou a se parecer, cada vez mais, com o futebol europeu, sem ter, contudo, o poder econômico para contratar os melhores jogadores do mundo e, pior, sem ter poder econômico para manter, nos times brasileiros, alguns dos melhores jogadores do mundo, revelados em nosso país. E nosso futebol foi se empobrecendo até chegar ao ponto em que chegamos hoje, quando nossos grandes craques internacionais só jogam por aqui quando não conseguem mais contratos na Europa, Estados Unidos ou países árabes.
A explicação do fenômeno de mediocrização do futebol brasileiro não é exclusiva do futebol, é um fenômeno mundial de colonialidade dos países periféricos. No tempo do Brasil colônia, ou da África colônia, as potências europeias extraíam o máximo possível de riquezas dos países colonizados. No tempo atual, da colonialidade, potências europeias, assim como a grande potência norteamericana, extraem o máximo possível de riquezas de nosso país sem que precisem estar presentes fisicamente. Enriquecem com nossas matérias primas, enriquecem nos convencendo a comprar suas quinquilharias, enriquecem com nossos jogadores de futebol, enriquecem dominando nossas vontades, enriquecem restringindo nossa capacidade de escolha, enriquecem evitando que tenhamos a oportunidade de desenvolver um pensamento crítico, enriquecem subtraindo nossas consciências. Esse é o efeito da colonialidade. No ano 2000, Enrique Dussel escreveu: “… é que o espírito da Europa (germânico) é a verdade absoluta que se determina ou se realiza por si mesma sem dever nada a ninguém. Esta tese, que chamarei de “paradigma eurocêntrico” (por oposição ao “paradigma mundial”), é a que se impôs não só na Europa ou nos Estados Unidos, mas também em todo o mundo intelectual da periferia mundial.” P. 51 (Dussel, 2000).
Quando for interessante para as potências do Norte que o futebol brasileiro seja poderoso, ele será. Por enquanto, é mais interessante e lucrativo fortalecer os grandes clubes europeus (e agora também alguns clubes árabes) com os artistas da bola produzidos no Brasil, na Argentina, na Colômbia, no Uruguai, no Equador e nos países africanos. As grandes potências não possuem qualquer interesse em fortalecer o futebol brasileiro, até porque a única maneira de fortalecê-lo seria manter nossos craques por aqui e permitir que os brasileiros jogassem futebol como brasileiros. Na contramão, a CBF permite que as equipes profissionais do Brasil integrem até nove jogadores estrangeiros, ampliando a catástrofe de nosso futebol. Se houvesse interesse em fortalecer o futebol brasileiro, em hipótese alguma o modo de identificar futuros craques seria o atual; praticamos o método da descoberta, o método de descobrir por aí meninos e meninas talentosos, e integrá-los às equipes de base, algo que se opõe ao método da formação. Futebol se ensina, ninguém nasce sabendo jogar. Porém, ensinar dá trabalho, exige formação de professoras e professores, exige infraestruturas, demandaria tempo, seria preciso ensinar a jogar futebol e os colecionadores de dinheiro não podem perder tempo educando pessoas; por enquanto é mais fácil pagar pessoas de formação duvidosa para descobrir talentos por aí. Os gênios do comércio futebolístico afirmam, sem corar, que futebol não se ensina, que os talentos já nascem prontos. Se tivessem interesse em estudar o assunto saberiam que, biologicamente, é impossível alguém nascer com talento para jogar futebol. Todos nascem com maiores facilidades ou dificuldades para as diversas ações possíveis no mundo. Revelarão tais facilidades ou dificuldades sempre que houver oportunidades para agir em situações diversas. Isso, porém, não prescinde de complexos sistemas de educação, que deveriam ajudar as pessoas a desenvolverem suas aptidões e superar suas dificuldades. Ninguém nasce destinado a jogar futebol, mas uma boa educação pode conseguir juntar boas aptidões com pedagogias competentes, aumentando as chances de formação de grandes jogadores. Mas aí estamos falando de educação, e esse termo produz manifestações alérgicas graves nos colecionadores de dinheiro do mundo do futebol. Metodologias para ensinar bem futebol existem, mas são, quase sempre, ignoradas. São metodologias que consideram o modo como os brasileiros pobres, brancos e pretos, aprenderam a jogar bola e transformaram o futebol brasileiro em uma potência mundial.
Não se trata, neste artigo, de negar toda a ciência e culpá-la pela degradação do futebol brasileiro. Ou de julgar que a educação física foi a única carrasca que levou nosso futebol ao cadafalso. Mas se trata, sim, de negar que a ciência dura é a única maneira de fazer ciência, que o pensamento clássico europeu é o único modo correto de pensar, e de afirmar que é possível fazer educação física de um outro modo que não o de suas raízes europeias. Somos de tal maneira condicionados pela colonialidade cultural que invade nossos currículos, pesquisas e práticas culturais, que, sempre que aparece um jogador diferente, com trejeitos tipicamente brasileiros, se ele não for um fenômeno excepcional, dificilmente sobreviverá à assepsia da arte a que será submetido nas escolas de futebol e categorias de base. E quando surge um técnico que ousa fazer algo parecido com o futebol brasileiro, a opinião especializada, torcedores e dirigentes apenas aguardam que ele seja derrotado algumas vezes seguidas para submetê-lo a um tribunal inquisitorial e condená-lo à fogueira. Claro que a maioria dos técnicos e aspirantes a técnicos que “sonham” com um jeito brasileiro de jogar futebol morrem no nascedouro ou renunciam ao “sonho” ao longo da trajetória profissional. Talvez devessem ser estratégicos e enganar o sistema, o que seria uma boa maneira de subverter essa ordem cruel de dependência dos países ricos. Quem sabe esses técnicos “sonhadores” de bons e corretos “sonhos” não deveriam dar ao seu trabalho, pelo menos durante algum tempo (início de temporada, começo de trajetória profissional), uma aparência tradicional, disciplinada, e ir, aos poucos, subvertendo essa ordem e transformando o pesadelo em sonho? Querer que os brasileiros possam jogar futebol ao seu modo produz um confronto com os colecionadores de dinheiro, injusto, posto que as armas dos colecionadores são, por enquanto, imensamente mais fortes. Porém, talvez os “sonhadores”, que sempre existirão, devessem aprender a viver dentro do sistema, mantendo a disposição de subvertê-lo sem que se perceba. Os colecionadores de dinheiro nada sabem de pedagogia ou de metodologia, portanto, ao olhar treinamentos e jogos nada perceberão. Até o “sonhador” chegar à vitória incontestável! E estou falando de algo que, de alguma forma, já aconteceu, e recentemente. Quando os colecionadores de dinheiro, alertados por quem entende mais que eles, perceberem, talvez não se importem, porque, de qualquer maneira, os resultados que eles queriam apareceram e isso não deixou de lhes alimentar a cobiça. E se se importarem e interromperem o trabalho, o sonho já foi realizado e o exemplo segue imortal.
Referências:
Dussel, Enrique. Ética da libertação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
Eco, Umberto. Viagem na irrealidade cotidiana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
Quijano, Aníbal. Ensayos em torno a la colonialidade del poder. Buenos Aires: Del Signo, 2019.
Freire, João Batista. Um mundo melhor, uma outra educação física (páginas 51 a 74). In: Rodrigues, David (org.). Os valores e as atividades corporais. São Paulo: Summus, 2008.
Futebol de rua. Foto: Lucas Ninno.