Por: Matheus Almeida
Durante 2023, andei refletindo com maior profundidade e engajamento os trabalhos de Fernando Diniz, principalmente o Fluminense da temporada 2023. Já havia tido contato com alguns conceitos do “Dinizismo” em 2017, por meio de uma palestra de Eduardo Barros, seu assistente técnico, na época no Audax, mas nunca havia concentrado meus estudos em Diniz. No Fluminense que foi campeão da libertadores e vice mundial em 2023, algo necessita ser destacado: O modo como jogam transcende a bola, é algo maior, uma filosofia coletiva com valores e princípios humanos muito presentes e, justamente isso que fazem a tática e as ideias de jogo, de fato, acontecerem em campo. Em minha análise, existem duas grandes bases para o “Dinizismo”: Valores Humanos e Caos, sendo o caos, uma maneira muito peculiar de lidar com ele. Sem essas duas coisas, acredito que o “Dinizismo” não existiria.
Valores Humanos como sustentação da tática
Como exemplo, é impossível uma equipe, no jogo mais importante para o clube, a final da libertadores contra o Boca Juniors, nas partidas da semifinal do mesmo torneio contra o Internacional, ou então no Mundial de Clubes contra o melhor time do mundo em 2023 (o Manchester City de Pep Guardiola), realizar uma saída curta, dinâmica, com trocas de posição para encontrar jogadores livres, se não houver coragem, solidariedade, dedicação nos treinos e nos jogos, e prazer em ousar e jogar dessa maneira, não importa o contexto.
Diniz já deixou isso bem claro em entrevista coletiva após o jogo contra o Internacional, vencido por 2×0, válido pela 14ª rodada do Campeonato Brasileiro de 2023, ressaltando que esses valores humanos são fundamentais para que o jogo proposto por suas equipes aconteça:
“[…] Então hoje acho que, preponderantemente, o time entrou muito agressivo, muito solidário. Jogar futebol, pra mim, é quando as relações humanas, elas conseguem, dentro do campo acontecerem. Nosso jogo é um jogo muito solidário, precisa de muitas coisas, precisa vontade para fazer, precisa disposição para fazer, precisa inteligência para fazer, então essas qualidades humanas, elas faltaram no jogo do São Paulo, aí a parte tática ela não funciona. Quando falta essas coisas a parte tática não corrige, essas coisas quando têm elas corrigem falha tática, mas falta de interesse em ganhar, a parte tática nunca corrige esse tipo de falta, ao contrário sim, quando a gente está com muita vontade, muito focado, jogando de uma maneira solidária, a gente pode errar alguma coisa taticamente como a gente errou hoje, taticamente sempre tem erro, mas a gente corrige de uma outra forma, porque essas coisas são mais importantes do que a parte tática […]” – Fernando Diniz coletiva após a 14ª rodada do Campeonato Brasileiro de 2023.
Nino, zagueiro do Fluminense campeão da Libertadores, que recentemente foi vendido ao Zenit, disse em carta de despedida, publicada no blog “The Players Tribune”, algo que se refere diretamente ao “Dinizismo” como uma filosofia de vida, além do campo:
“Esse cara (Fernando Diniz) me ensinou muita coisa, mas me ensinou principalmente a enxergar certas coisas que realmente importam de outro jeito. Eu tinha medo de fracassar. E talvez eu tenha transformado esse medo no meu combustível pra não fracassar. Mas é pesado viver assim. Então o que é fracassar? Falam muito em “dinizismo”, que o dinizismo isso, o dinizismo aquilo. Pra mim o dinizismo é ter outra perspectiva sobre tudo, enxergar o mundo e a vida de outro jeito. Pra isso é preciso ter coragem. E amigos” – Nino em The Players Tribune
Além dos valores humanos, outra base fundamental do “Dinizismo” é a ideia de caos ser muito presente no jogar das suas equipes.
Caos, o aliado do “Dinizismo”
Ricardo Drubski, em participação no podcast Charla, comenta que conversou com Eduardo Barros, Auxiliar Técnico de Fernando Diniz desde outros clubes. Segundo Drubski, Eduardo o disse que Diniz faz uma Gestão do Caos. Isso é muito interessante.
Diniz mostrou seu poder de influência com suas ideias, inclusive nas transmissões de jogos do Fluminense ou da Seleção Brasileira, pois até narradores e comentaristas começaram a falar sobre o caos nos jogos das equipes de Diniz, um conceito muito profundo sobre o jogo, que nas universidades, como na Unicamp, já se estudava e, que por meio do treinador, começaram a entrar no entendimento da imprensa.
Sobre a gestão do Caos, o Fluminense apresenta o que, para mim, seria uma “estrutura caótica”, geralmente nas beiradas, onde busca aglomerar muitos jogadores do lado da bola, com no máximo dois atletas para a retirada no lado oposto do campo. Nessa estrutura caótica, há a paralela cheia, apoios, jogadas e movimentações coordenadas, como se fossem geradas quadras de futsal onde está a bola. Um jogo caótico, mas com padrões, pois no caos, há ordem.
Diria eu que Diniz é um aliado do Caos, pois, pelo menos vendo de fora, se aproxima do Caos da mesma maneira que se aproxima de seus atletas para que a equipe crie fortes laços interpessoais. As equipes de Fernando criam laços fortes com o Caos.
A Teoria do Caos tem como objeto de pesquisa os sistemas não-lineares, buscando entender eventos aparentemente aleatórios, imprevisíveis e desordenados, sensíveis a pequenas alterações, sendo possível encontrar padrões no Caos como o pesquisador Gleick traz em 1989, mencionado por Rodrigo Leitão em sua Tese de Doutorado em 2009. Essas pequenas alterações são abordadas na ideia de “Efeito Borboleta”, de Edward Lorenz, ao observar que o sistema computacional que utilizava para fazer previsões climáticas chegou a resultados distintos partindo de mesmas condições iniciais, devido a uma diferença de casas decimais depois da vírgula, algo muito pequeno, que com o passar dos resultados, começa a gerar grandes alterações nos cálculos. (Leitão, 2009)
No caos há padrões, mas para observar a complexidade contida no caos é necessária a ideia de fractais, pequenas partes de um todo, que são a forma e conteúdo de sua figura maior (Leitão, 2009). As partes são a imagem do todo e o todo é a imagem das partes como na figura abaixo, o todo, triângulo maior, e seus fractais, triângulos cada vez menores.

EDUARDO BARROS E FERNANDO DINIZ NA FINAL DO MUNDIAL DE CLUBES. FOTO DE LUCAS MERÇON /FLUMINENSE FC | EDIÇÃO DE MATHEUS ALMEIDA
Em um sistema caótico, a complexidade é presente, sendo o termo Complexidade, sinônimo da interação de elementos, cada qual com sua característica individual, se relacionando entre si, e formando uma organização específica da combinação daquelas características dos elementos, dando forma a um todo (Morin, 1997).
Para simplificar, vamos pensar de modo prático. Se em um espaço reduzido no campo, houver uma situação de 3×3 e, em uma equipe o trio for formado por Messi, Neymar e Suárez, ocorrerá uma combinação de características individuais, que, ao se relacionarem, formam um todo específico que se expressa no jogar deste trio contra seus adversários. Porém, se nesse trio, substituirmos Neymar por Thiago Silva, muda-se as características de um dos seus elementos, muda-se o todo e o modo como esse todo jogará. Relacionando as interações do trio com as interações do trio rival, percebe-se que o jogo de futebol é muito complexo e caótico e não se pode controlar o caos, mas geri-lo, como faz Diniz de modo muito peculiar.
Diniz, em suas equipes, busca gerar uma estrutura caótica, mas que apresenta padrões, fractais que se repetem e organizam esse caos. A “Estrutura caótica” de Diniz pode ser composta, segundo minha análise, por:
- Valores Humanos como sustentação das interações táticas;
- Características dos jogadores se relacionando formando um todo específico naquele pequeno espaço de campo;
- Posicionamentos, movimentações e jogadas coordenadas para o funcionamento da estrutura caótica que visa atrair o adversário em direção à bola e liberar jogadores livres nas costas da pressão
A principal ideia da equipe de Diniz, atacando, é atrair a pressão para a bola e libertar jogadores livres nas costas dessa pressão em vantagem posicional. Isso se observa no macro, quando o Fluminense faz uma saída de bola curta, sustentada, com muitos jogadores próximos à primeira fase de construção, induzindo o adversário a subir o bloco de marcação e pressionar sua saída de bola. Essa dinâmica acontece também nos seus fractais, nos espaços reduzidos, próximos à bola, onde o fluminense também busca atrair a pressão e quebrar linhas com passes e triangulações.
Muito importante dizer, porém, que o modo como se gera essa vantagem posicional é muito peculiar devido à mobilidade e trocas de posição, pois os jogadores que podem aparecer no setor da bola nas costas da pressão não necessitam ser um meia ou um ponta que jogam no lado em que a bola está, mas podem ser o ponta do lado oposto, que atravessou o campo para estar alí, ou outro jogador de outra posição.
A estrutura caótica gerada no lado da bola em espaço reduzido tem posições base para abrir a marcação adversária e gerar um corredor no meio deste pequeno espaço de campo, onde o Fluminense irá atrair a marcação para a bola e para fora, abrindo este corredor, que pode ser ocupado por qualquer jogador visando receber nas costas da pressão.
Vídeo 1. O todo está para as partes assim como as partes estão para o todo
A “Estrutura Caótica” de Diniz apresenta muitos jogadores atacando os espaços na paralela. Esse padrão pode ser chamado de paralela cheia, com o seguinte posicionamento inicial: Dois, três ou até quatro jogadores podendo se posicionar na paralela, pelo menos dois jogadores de apoio, por dentro em suas diagonais, um pivô e um jogador na base da estrutura como passe de retorno.
Vídeo 2. A estrutura Caótica (Fluminense vs Grêmio – Brasileirão)
Os jogadores saem das suas posições para formar essa estrutura inicial, num jogo “aposicional” (chamo assim não para rotular, mas para compreender que os jogadores não se mantêm em suas posições, buscando gerar vantagem numérica no setor da bola, próximos à essa estrutura caótica). Pode-se perceber que se busca inicialmente de um a dois passes na paralela, em seguida, passes para os apoios internos, sempre de frente para o jogo, buscando tocar e passar da linha da bola, ou ocupar um espaço vazio dentro dessa estrutura caótica, gerando uma nova linha de passe. Os jogadores buscam aproximar desta estrutura caótica e podem formar triângulos ou “escadinhas”, com tabelas e corta-luzes para gerar situação de 3º jogador e infiltração.
VIDEO 3. Escadinha gerada com Marcelo circulando pelo meio e aproximando da bola
Outro detalhe são as trocas de posição no setor da bola. Uma mecânica frequente é quando a bola está com o zagueiro, lateral vem por dentro, meia ocupa o espaço deixado pelo lateral, recebe a bola, em caso de manutenção de posse, faz o passe horizontal para o lado oposto e troca com o zagueiro, que ocupa a beirada. Veja no vídeo.
Vídeo 4. Trocas de Posição (Fluminense vs Grêmio – Brasileirão)
(Esse texto continua na parte 2, semana que vem, sobre o tema “Diniz: No Caos Há Ordem)
Até lá!
📷 Foto de capa: Matheus Lima/Vasco da Gama
3 respostas em “Diniz o aliado do caos (parte 1): caos, jogo e seres humanos”
Curti essa visão do Diniz sobre o caos no futebol. Super diferente e faz a gente pensar!
Matheus, ótima a sua análise. Algo muito interessante é constatar que o Diniz faz tudo isso sem ter partido de uma teoria do caos ou da complexidade. Ele tem uma ótima ideia sobre imprevisibilidade, mas boa parte do que ele faz brota da intuição. Outra parte de sua experiência com o futebol, e outra parte ainda de suas teorias. Se lembrarmos dos joguinhos de pelada em pequenos espaços de terra, areia, grama, as crianças e adolescentes jogam apertadinhos, colados uns aos outros, com passes curtos, pequenos dribles, sem chutões. O trabalho de Diniz tem muito a ver com esse futebol de rua, com a brincadeira, com simplicidade (sem simplismo) e poesia.
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