O treino e a complexidade humana

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Por: Manuel Sérgio

1. Será de referir, antes do mais, que os treinadores e os jogadores treinem e se treinem como se joga, ou seja, de modo competitivo, tendo em conta os factores de rendimento (físicos, técnico-tácticos, psicológicos e morais), todos igualmente importantes e incluindo neles o treino invisível. Há, no treino, fatores quantitativos e qualitativos. Saber interpretar a quantidade de ácido láctico; manejar os dados obtidos, através da pulsometria; entender os resultados dos exames médico-desportivos dos atletas – tudo isto (são exemplos, entre outros) permite dar prioridade ao quantificável. Mas, o essencial é invisível aos olhos e, por isso, dificilmente quantificável. Assim, como é possível medir-se a capacidade de comunicação de um treinador, ou a sua liderança? Há dimensões da subjectividade de fundamental importância, na profissão de treinador e no desempenho desportivo. É o homem que se é que triunfa no treinador que se pode ser. Luís Alonso Perez, conhecido por Lula nos meios do futebol: “coube a ele comandar o maior time de futebol de todos os tempos, o Santos Futebol Clube dos anos 50 e 60” (Maurício Noriega, Os 11 Maiores Técnicos do Futebol Brasileiro, Editora Contexto, S. Paulo, 2009, p. 79). Entre 1954 e 1966 treinou uma equipa onde pontificavam Pelé, Coutinho, Pagão e Pepe. E, no entanto, Lula nunca jogou futebol profissional, era motorista de táxi e falava uma linguagem com muitos erros gramaticais. Mas, teve um êxito espectacular como treinador dos juvenis do Santos e, daí, passou a treinador da equipa principal. Em 12 anos, conquistou 38 títulos! O que o distinguia dos demais treinadores? Os jogadores deliciavam-se com o que ele dizia e com a simpatia que manifestava por todos. A relação era sujeito sujeito e não sujeito-objecto. Por fim, sabia ler um jogo, como poucos. Os êxitos (e os inêxitos) do treinador não podem dissociar-se da sua personalidade e da sua conduta. Um treinador informado, mas sem qualidades de liderança e sem um admirável comportamento moral, não é um treinador eficaz. Já digo, há muito, que para saber de futebol é preciso saber mais do que futebol. Fazer- se respeitar, pelas qualidades de liderança e pelo comportamento moral – tudo isto, essencial ao treinador de futebol, é bem mais do que futebol…

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2. Mas não é também, trabalho inadiável, no desporto, a qualificação dos recursos humanos? Não há que promover e realizar um trabalho científico de excelência, visando o desenvolvimento desportivo? “Devemos saber combinar inteligência instrumental-analítica, donde nos vem o rigor científico, com a inteligência emocional-cordial, donde derivam as imagens e os mitos” (Leonardo Boff, Saber cuidar, Editora Vozes, Rio de Janeiro, 1997, p. 37). Segundo o “erro de Descartes”, a alma (a res cogitans) e o corpo (a res extensa) são substâncias distintas, dando primazia à razão e ao more geométrico, ou seja, ao modelo das ciências ditas exactas. Dizer que se deve pensar o mundo físico, no quadro de uma axiomática geométrica, significa reconhecer que algo desse mundo se torna impensável: a qualidade. Ora, é precisamente sob a influência de Descartes (1596-1650) que nasce a educação física, entendida como educação do físico, ou do corpo que outra coisa não era, na cultura ocidental, do que físico, ou seja, matéria. Portanto, o corpo deveria treinar-se, para obedecer com celeridade e aprumo aos ditames da razão. Por outro lado, em Descartes, para conhecer, é preciso dividir “em tantas parcelas, quanto possível e necessário, para melhor resolver as dificuldades”. Assim, o método, na educação física e no desporto, começou por ser analítico e quantitativo, tentando fazer de cada educando, ou de cada atleta, o homem-máquina, já que tudo o que é natureza nada mais é do que uma máquina. Aliás, o mecanicismo constituiu o pressuposto de toda a investigação científica. Era portanto o homem-máquina, que os números davam a conhecer, o grande objectivo da educação física e do treino desportivo. Deverá acentuar-se também criou uma íntima relação entre a classe burguesa ascendente, ou seja: os homens de negócios, e a matemática, entendida como método universal: é que o quadro próprio dos negócios é o cálculo. Enfim, a educação física, como educação de um físico que será tanto mais perfeito quanto mais se aproximar do funcionamento de uma máquina nasce depois de Descartes e o primeiro autor a utilizar a expressão “educação física” é um médico, Ballesxerd, que, em 1762, escreveu o livro “Educação Física para as crianças”. Ora, esta educação física, como educação do físico, e um treino visando o homem-máquina, chegam até meados do século XX…

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3. “Não nos podemos esquecer que a ciência moderna conferiu uma extraordinária importância à quantificação. Temos boas razões para crer que esse procedimento epistemológico de valorizar o quantitativo tenha raízes sociais. O que significa quantificar senão contar, medir e pesar? A quantificação pressupõe a posse dos métodos de cálculo, de balanças, de todo um equipamento material e mental (…). A ciência moderna nasceu num momento histórico em que a quantificação possuía uma significação fundamental na prática social” (Hilton Japiassu, A Revolução Científica Moderna, Imago, Rio de Janeiro, 1985, p. 129) é que a ordem e a quantificação interessam sobremaneira ao desenvolvimento do capitalismo! A educação física e a medicina, ambas produto, em termos modernos, do cartesianismo, apresentam, até meados do século XX, as características da ciência moderna. E assim a ginástica, os jogos e os desportos destinam-se à formação de um corpo, máquina autêntica, mesmo quando ao serviço de grandes ideais sociais. O treino desportivo, ao longo da modernidade, mais propriamente a partir dos primeiros Jogos Olímpicos da Era Moderna, centrou-se em primeiro lugar na técnica, depois no treino físico e, por fim, no volume de treino. Num livro intitulado Metodologia do Treino Desportivo, da autoria da Associação Nacional de Treinadores de Basquetebol e editado pelo ISEF de Lisboa, em 1981, David Monge da Silva escreve: “Para detectarmos quais as tendências de evolução do treino, deveremos conhecer qual a situação actual, nos domínios da investigação. Com efeito, são os resultados desta que imprimem a orientação futura do treino. Neste momento, nos centros de investigação mais avançados, os estudos os estudos centram-se fundamentalmente nas seguintes áreas: técnicas de recuperação; métodos inabituais de treino” (p.67). Este texto, de há 30 anos atrás, permite que eu possa apresentar a minha teoria da motricidade humana ou, usando as palavras de Nietzsche, a minha “teoria da acção”. De acordo com este autor (que eu conheci, através de Júlio Garganta, no livro Olhares e Contextos da Performance nos Jogos Desportivos, editado pela Faculdade do Desporto da Universidade do Porto, pp. 150 ss.) no desporto, uma acção é um comportamento táctico. Para mim, a motricidade humana é a energia para o movimento intencional da transcendência (ou da superação). Assim, no corpo em acto, ou motricidade humana, o comportamento táctico encontra-se integral, mas superado. É que a transcendência (ou superação) é o sentido da vida. De facto, viver é uma tentativa incessante de superação. O desporto é um dos aspectos deste anseio inato de transcendência e portanto o treino desportivo persegue-a, prepara-a, antecipa-a, à luz do conhecimento do jogo.

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4. A Ciência da Motricidade Humana (CMH), por mim teorizada, foi apresentada, publicamente, nas minhas provas de doutoramento, em 1986. Porque estuda o movimento intencional da transcendência, é uma ciência social e humana. Aliás, a transcendência é uma dimensão especificamente humana, inédita nas demais criaturas, já que se afirma como ruptura e como projecto: ruptura, em relação ao mundo tradicional, que nos foi transmitido; projecto como criação de um mundo novo. São especialidades da CMH o desporto, a dança, a ergonomia, a reabilitação psicomotora, etc., ou seja, práticas onde se torna visível o movimento intencional da transcendência. José Mourinho, considerado pela FIFA o melhor treinador de futebol do mundo, no ano de 2010, foi capaz de transcender e transcender-se, criando um método anti-dualista e anti-cartesiano, longe dos métodos analíticos de treino e bem próximo do método da complexidade que a CMH defende. Em José Mourinho, a preparação dos jogadores, para a alta competição, subordina-se a um modelo de jogo, que se torna o elemento regulador das variáveis físicas, técnicas e psicológicas. Chama-se a esta metodologia a periodização táctica. Mas há mais: José Mourinho sabe que a prática desportiva se funda no sujeito, no humano na sua globalidade. Problematizá-la significa equacionar, não um físico, mas o Homem, em toda a sua amplitude e profundidade. Também no desporto não é pensando que somos, mas é sendo que pensamos. Em José Mourinho, a preparação do atleta é simultânea com a preparação do homem que o jogador é. No treino, que José Mourinho lidera, o físico, o técnico, o táctico, o psicológico e o moral são trabalhados ao mesmo tempo. “Por isso, a noção de organização passa a ser capital, dado que é através da organização das partes num todo que aparecem as qualidades emergentes e desaparecem as qualidades inibidas” (Edgar Morin e Jean Louis Le Moigne, Inteligência da Complexidade: Epistemologia e Pragmática, Instituto Piaget, 2009, p.43). Aqui, a organização obedece a princípios e a um determinado modelo de jogo. Portanto, José Mourinho tem uma forma de pensar (o pensamento complexo), um método (o método da complexidade, fundamentado em Edgar Morin) e tudo isto sujeito a um questionamento sistemático. Uma profissão é conhecida e respeitada, a partir do que produz, da qualidade do que produz, da utilidade do que produz e, sobretudo, da postura crítica diante do que produz.

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5. Passemos a escutar o próprio José Mourinho: “Treino para mim só é bom, quando se consegue operacionalizar o que é a ideia-chave, isto é, o treinador tem de encontrar exercícios que induzam a sua equipa a fazer o que se faz no jogo” (A Bola, 2003-1-10). “O mais importante numa equipa é ter um determinado modelo, determinados princípios, conhecê-los bem, interpretá-los bem, independentemente de ser utilizado por este ou por aquele jogador. No fundo, é aquilo que eu chamo organização de jogo” (A Bola, 2002- 2-2). “A equipa que eu desejo é aquela que, num determinado momento, perante uma determinada situação, todos os jogadores pensam da mesma maneira” (revista Dragões, Janeiro de 2002). “Defendo a globalização do trabalho, a não separação das componentes físicas, técnicas, tácticas e psicológicas, embora para mim o psicológico seja fundamental” (revista Única do Expresso, 2004-11-27). Um jornalista da revista Ideias & Negócios (Junho de 2003) questionou José Mourinho que era, nesse ano, treinador do F.C.Porto: “O treinador, Felipe Scolari, diz que o sucesso deum jogador é feito em 50% por preparação física, em 25 por cento por técnica e em 25 por cento por psicologia. Concorda?”. Resposta pronta de José Mourinho: “Discordo totalmente. Eu digo que, para haver sucesso, numa equipa de futebol, a equipa tem de estar cem por cento preparada. E quando eu digo cem por cento não consigo dissociar aquilo que é físico, daquilo que é táctico, daquilo que é psicológico. Para mim, um jogador é um todo, tem características físicas, técnicas e psicológicas, que tenho de desenvolver como um todo. Não consigo separar. Eu não faço trabalho físico. E, quando dizem que o Porto está muito bem preparado fisicamente, refuto isso totalmente. O Porto utiliza uma metodologia que rompe com todos os conceitos tradicionais do treino analítico” À SportTV, no dia 2003-5-14: “Nós começámos esta época e, desde o primeiro dia, trabalhámos tacticamente”. – Ao jornal Record (1999/2/7): “Quando vejo referências às pré temporadas das nossas equipas e me mostram imagens dos atletas a correr, a trabalhar no espaço que não é o campo de futebol, da praia ao campo de golfe, dou comigo a pensar que são métodos ultrapassados, para não dizer arcaicos”. “Os meus treinos não são treinos demorados, não ultrapassam a hora e meia, mas com muita dinâmica e um tempo útil altíssimo”. Para o José Mourinho, a intensidade de esforço significa muita concentração: “correr por correr tem um desgaste energético natural, mas a complexidade desse exercício é nula. E, como tal, o desgaste, em termos emocionais, tende a ser nulo também, ao contrário das situações complexas, onde se exigem aos jogadores requisitos técnicos, tácticos, psicológicos e de pensar as situações – isso é que representa a complexidade do exercício e conduz a uma concentração maior” (Público, 2002/7/14). Sublinho, neste passo que, no arrolamento das minhas ideias sobre o treino em José Mourinho, a responsabilidade não é do treinador do Real Madrid, pois que elas me nasceram da leitura de livros que desta problemática se ocupam. Há nelas uma construção lógica, ou mental, do que encontro em obras várias.

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6. As ideias de José Mourinho informam profundamente os seus jogadores, porque ele tem qualidades de liderança, sabe ler o jogo e sabe comunicar para poder motivar. A liderança, a leitura de jogo e a motivação nem todos os treinadores as fazem, com mestria. E assim um conhecimento teórico do desporto é insuficiente, se não se têm as qualidades humanas típicas de um líder. Um ponto a salientar: porque o ser humano é um ser cultural, não há futebol sem filosofia. É que, em todas as grandes equipas de futebol, há um pensamento prévio que as informa. Compreende-se assim porque se fala da filosofia que subjaz ao jogo do Barcelona. Onde há futebol, há filosofia, ou seja, há uma tentativa de racionalizar, incluindo o que não é racionalizável. No futebol, há causalidade (causa) e caosalidade(caos), há pensamento e vivência. A realidade(neste caso, o futebol) é mais do que pensamento e mais do que a linguagem. Esta serve, sobre o mais, para motivar e explicar que o mais importante ainda está dizer e… fazer!

Assim, o futebol não se resume ao seu saber. A realidade excede sempre o que se sabe. Um treinador, como Jorge Jesus, tem a teoria da sua própria prática e, porque tem uma prática de mui tos anos, tem a teoria que criou mais a prática de todos os dias. Mas não é a cultura a aliança do saber e da vida?

Foto: https://img.iol.pt/image/id/566f2dfd0cf237ca45a2cd0b/

Imagem 1: Fotomontagem (Autoria Própria)

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Imagem 5: Isabella Bonotto/AFP

Artigo originalmente escrito e cedido a Universidade do Futebol pela Revista Futebol Estudado, no seguinte endereço: https://www.revistafutebolestudado.com/

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