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Qual o médico português, hoje, por mais informado que seja, que afirma, sem receio, ser melhor médico do que o foram, por exemplo, Egas Moniz, Francisco Gentil, Fernando Fonseca, Polido Valente ou Reinaldo dos Santos?

O nosso António Damásio, neurologista que o mundo todo conhece e admira, pode considerar.se mais inteligente do que o Claude Bernard (1813-1878), um dos nomes maiores da História da Medicina, porque tem por si conhecimentos que o médico francês necessariamente não possuía?

Em todas as áreas do conhecimento, os pioneiros não temem cotejo com os seus discípulos, porque o progresso com eles se iniciou e não com os mais jovens. “Eu sou eu e a minha circunstância”.

Ora, a “circunstância” de meados do século XX, ou do século XIX, não dava espaço a homens superiormente inteligentes, como os que acima citei, que pudessem revelar muitas das suas virtualidades.

Na sua tese de doutoramento (de que fui eu o orientador, perdoem-me a imodéstia) Gonçalo M. Tavares declara que até os movimentos, se é verdade que pertencem ao esqueleto que os sustém, à vontade individual e às decisões tomadas por uma única cabeça, não é menos certo que, também eles, estão condicionados por Leis, por uma História, por uma Geografia, por uma Economia.

Por isso, em cada movimento, o corpo pode afirmar: eu já não sou o que era! Também as várias ciências se movimentam e, a cada corte epistemológico, cada uma delas pode adiantar sem receio: eu já não sou aquilo que era. E não é o desporto movimento?

Os meus oitenta anos de vida, quase sempre próximos do futebol, permitem-me escrever o seguinte: para depor sobre os melhores rematadores do futebol português, que eu tenha visto jogar, julgo dever assinalar Fernando Peyroteo (nos 432 encontros em que participou marcou 694 golos), Matateu, Eusébio, Fernando Gomes, Pauleta e Cristiano Ronaldo.

Para o pódio, apontaria Eusébio, Cristiano Ronaldo e Matateu, por esta ordem.

Nem a Medicina, nem a Psicologia, nem o Direito, nem a Sociedade, nem a Cultura, nem os Clubes, nem a organização desportiva, nem o próprio treino, na década de sessenta, podiam dar ao Eusébio o que podem oferecer, hoje, ao Cristiano Ronaldo. E, se as condições não são idênticas, mesmo coligindo observações minuciosas uma classificação rigorosa não se torna possível.

Façamos de ambos émulos de Deus, na sua função criadora de futebolistas geniais. E deixemo-nos de romper pelos jornais, pela rádio e pela televisão, a anunciar: o Cristiano Ronaldo é melhor do que o Eusébio. Ou o contrário: o Eusébio é melhor do que o Cristiano Ronaldo. Seria o mesmo que dizermos que o Platão é melhor que o Aristóteles, ou que o Dante é melhor do que o Camões ou, futebolisticamente falando, que o Maradona é melhor do que o Pelé.

N’A Poética do Espaço, Gaston Bachelard adverte: “O cientista nunca vê pela primeira vez. Na observação científica, uma só vez não conta. A ciência pertence ao reino das muitas vezes” (p. 164). Ora, como é que opinadores que nunca viram jogar nem o Eusébio, nem o Pelé, muitas vezes (alguns. nem uma vez que fosse), podem convictamente afirmar que o Cristiano Ronaldo é melhor do que o Eusébio, ou que o Maradona é melhor do que o Pelé?

Durante estes meus oitenta anos de vida, distingo dois extremos, no futebol português, que jogavam normalmente à direita: José Augusto e Figo. A ambos os vi jogar muitas vezes (ao Figo, mais pela televisão). António Oliveira (F.C.Porto e Sporting C.P.), um verdadeiro artista que, como o Manuel Vasques dos “cinco violinos”, fazia do futebol um pretexto para dizer e fazer beleza – António Oliveira nem sempre jogou à direita, como um extremo clássico (os seus três anos de jogador do Sporting assim o confirmam). Por isso, escolhi o José Augusto e o Figo.

O José Augusto usufruía de uma velocidade e de um jogo de cabeça e de um poder de finta que o Figo não tinha. Este era mais poderoso e de inexcedível inteligência tática. Qual dos dois foi o melhor? Não sei!

Que o digam os estagnados em rotinas caducas que nunca viram jogar o José Augusto. Num romance de Clarice Lispector, o seu livro Uma Aprendizagem ou o livro dos prazeres, uma das personagens afirma: “Não entender era tão vasto que ultrapassava qualquer entender. Entender era sempre limitado. Mas não entender não tinha fronteiras. O bom era ter uma inteligência e não entender. Era uma bênção estranha, como a de ter loucura sem ser doida” (p. 42).

Admito, de facto, que dê um gozo estranho falar do que não se sabe. Mas vou mais além. Sócrates tinha razão, ao declarar: “Só sei que nada sei”. Mas uma coisa é não saber porque se sabe e outra é não saber porque não se procura o saber.

É evidente que, se me referisse a extremos, que jogavam normalmente do lado esquerdo, escolheria, para o pódio, António Simões, Paulo Futre e Fernando Chalana. Uma nótula para evitar confusões…
 

*Antigo professor do Instituto Superior de Educação Física (ISEF) e um dos principais pensadores lusos, Manuel Sérgio é licenciado em Filosofia pela Universidade Clássica de Lisboa, Doutor e Professor Agregado, em Motricidade Humana, pela Universidade Técnica de Lisboa.

Notabilizou-se como ensaísta do fenômeno desportivo e filósofo da motricidade. É reitor do Instituto Superior de Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares do Instituto Piaget (Campus de Almada), e tem publicado inúmeros textos de reflexão filosófica e de poesia.

Esse texto foi mantido em seu formato original, escrito na língua portuguesa, de Portugal.

 

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