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Meu caro Cristiano Ronaldo,
 
Perdoe-me a ousadia desta carta. Não sei se já ouviu falar de mim. Num ponto estaremos de acordo: nem sequer ainda nos cumprimentámos! Mas eu conheço-o inevitavelmente. O Cristiano é um dos grandes mitos do nosso tempo! Vejo futebol, há muitos anos e não me custa colocá-lo, no pódio, ao lado da meia-dúzia de melhores jogadores que conheci: o Pelé, o Maradona, o Matateu, o Eusébio, o Puskas e o Cruyff. Estou a vê-los, neste momento, com os olhos da saudade – da mais dolorosa das saudades que é aquela que nós sentimos por nós mesmos!… Há-de estranhar não ter referido o nome do Di Stéfano. Ele foi, para mim (e até é natural que eu me engane) o maior entre os maiores. Esperemos que haja prémio, no Céu, que o distinga. Na Terra, não há. Entre ele e todos os outros, há uma diferença de qualidade. No entanto, em Portugal, é bem possível que nenhum jogador haja beneficiado da publicidade que o tem anunciado, por esse mundo além. Confesso, porém, que talvez nenhum deles apresentasse o dom de comunicabilidade, a energia persuasiva, a originalidade criadora que o Cristiano tem… indiscutivelmente!
 
Se, neste caso, o todo é maior do que a soma das partes, a totalidade que você é, como futebolista de eleição, talvez não tenha par, na história do futebol português. E, por isso, para o nosso tempo (e não só na sua terra natal que, neste momento, estremece de emoção pelos seus feitos), o Cristiano Ronaldo é um semi-deus! Nas religiões tradicionais, as divindades sempre estiveram directamente relacionadas com as forças da natureza, fosse nos faraónicos egípcios, na Grécia ou na Roma da Antiguidade. No judaísmo, Iavé fala com Moisés, no meio de trovões. No Evangelho, os ventos e as ondas obedecem a Jesus Cristo. Na nossa sociedade, laica e agnóstica, Deus parece poder ser dispensado, mas não morreu a necessidade de crer num Absoluto, qualquer que ele seja. Ortega y Gasset percebeu que “a religião do século XX é o futebol”. O historiador Eric Hobsbawn é mais específico e adianta: “o futebol é a religião laica da classe operária”. Não surpreende, por isso, que você, ilustre madeirense e português, produto do seminário de jogadores excepcionais, que é o Sporting Clube de Portugal, seja (repito) um semi-deus.
        
Eu estudo filosofia do desporto há precisamente quarenta anos; já convivi com muitos colegas seus de profissão e com alguns treinadores de nomeada, como o José Maria Pedroto (para mim, o maior de todos) – e aprendi, por isso, que o futebolista genial não o é só pelas suas qualidades físico-motoras, mas também pelas suas qualidades psicológicas e espirituais. Arrebatadores e assombrosos, fisica e tecnicamente, foram também o Mané Garrincha ou, em Portugal, o Vítor Batista, e acabaram na miséria física e moral. E o Maradona é o actual seleccionador da Argentina, porque uma nação inteira o não deixa tombar por terra. Não há exemplo maior de divinização de um futebolista do que a referência ao golo ilegal que ele fez aos ingleses no Mundial de 1986… “com a mão de Deus”, dizem! Só que nenhum dos tristes exemplos aqui citados (e outros que me ocorrem) dispunha do dinheiro que você aufere, nem do calor que lhe transmite o regaço carinhoso de sua família.
 
Mesmo assim, não se esqueça do que há de frágil na glória, nem o que há de efémero no êxito. Com muito dinheiro, são muitos os que não são cidadãos exemplares, são muitos os que não são modelos de virtudes cívicas, são muitos os que findam os seus dias, sem paz e sem amor. Ora, um atleta da sua craveira, mesmo sujeito a errar, como “é próprio do Homem”, deve manifestar também uma mentalidade forte, uma sólida formação moral. Porque só se é verdadeiro desportista, quando antes se é Homem, na acepção plena do termo. O Cristiano Ronaldo já tem por si a admiração de muita gente, como jogador de futebol! Que a tenha também como Homem! Deixe-me agora assinalar que o prestígio das instituições deve-se quase sempre à conduta dos homens (e mulheres) que os servem (ou serviram). E um Clube que lhe paga e solicitamente o acompanha, como o Manchester United o faz, bem merece, da sua parte, solidariedade e respeito.
 
Uma vez mais, peço-lhe que me desculpe por esta carta. Afinal, eu só queria associar-me, com legítimo orgulho, porque sou português e velho amante do futebol, aos aplausos que, neste momento, o rodeiam – aplausos inteiramente merecidos ao meu compatriota que é considerado por muitos o melhor futebolista do mundo! Eu escrevi “por muitos”? É que, de facto, são muitos também os que apostam em Messi ou Kaká! E com irrecusáveis argumentos…
        
Seu
                                     
 
Manuel Sérgio
 
*Antigo professor do Instituto Superior de Educação Física (ISEF) e um dos principais pensadores lusos, Manuel Sérgio é licenciado em Filosofia pela Universidade Clássica de Lisboa, Doutor e Professor Agregado, em Motricidade Humana, pela Universidade Técnica de Lisboa.

Notabilizou-se como ensaísta do fenômeno desportivo e filósofo da motricidade. É reitor do Instituto Superior de Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares do Instituto Piaget (Campus de Almada), e tem publicado inúmeros textos de reflexão filosófica e de poesia.

Esse texto foi mantido em seu formato original, escrito na língua portuguesa, de Portugal

Para interagir com o autor: manuelsergio@universidadedofutebol.com.br

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