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Crédito imagem: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Quanto à indagação título deste artigo, adiantamos nossa resposta: TUDO! É fácil notar a atuação técnica e política dos jogadores de futebol brasileiros, e é praticamente consenso ver, cada vez mais, a perda de criatividade ou a privação dos jogadores de desenvolvê-la e exercê-la, assim como temos visto, também, o cerceamento de posicionamentos críticos daqueles poucos que se propõem a manifestar-se, eximindo-se da responsabilidade de contribuir com a formação de atletas e sujeitos críticos.

Comecemos pela criticidade… ou a falta dela. Em texto anterior, tratamos do descabimento da realização da Copa América de Futebol em solo brasileiro e, principalmente, da oportunidade perdida pelos jogadores da seleção de se posicionarem criticamente em relação ao contexto pandêmico, inclusive, negando a participação nessa absurda, imprudente e desrespeitosa competição esportiva. Faltou capacidade, ou coragem, para um posicionamento crítico desta ordem.

Há algumas semanas, os jogadores de uma das equipes da primeira divisão do Campeonato Brasileiro de futebol resolveram se posicionar publicamente em relação ao atraso dos salários. E foram duramente criticados por isso. Poucos dias depois, o principal jogador da seleção brasileira manifestou-se nas redes sociais esbravejando, grosseiramente, inclusive, contra a posição de alguns torcedores que afirmaram a intenção de torcer para a equipe adversária da seleção brasileira, a Argentina, na final da Copa América. Tal jogador, que inquestionavelmente tem poder altíssimo como formador opinião, colocou-se como patriota, mas em momento algum questionou as mortes decorrentes da pandemia, as faltas de vacinas, as denúncias de corrupção do atual governo. Enfim, a criticidade do jogador de futebol brasileiro é, infelizmente, assim: cerceada ou inexistente.

No contexto do Esporte Olímpico, mas ainda no âmbito do futebol, se por um lado presenciamos declarações altamente críticas, coerentes e certeiras das jogadoras da seleção feminina, Marta e Formiga, especificamente, na seleção brasileira masculina de futebol notamos, novamente, um comportamento como se os jogadores fizessem parte de outro mundo, com total falta de empatia pelos atletas olímpicos de outras modalidades da delegação brasileira, que subiram ao palco de premiação com o agasalho do COB. Ao receber as medalhas usando o uniforme de um patrocinador da CBF, descumpriram as regras e termos assinados, sem pensar que esse ato poderia prejudicar os atletas de outras modalidades. Um dos medalhistas brasileiros da natação afirmou, inclusive, que “A mensagem foi clara: não fazem parte do time e não fazem questão. Também estão completamente desconexos e alienados às consequências que isso pode gerar a inúmeros atletas que não são milionários como eles”. Em resposta, o capitão da seleção brasileira masculina de futebol afirmou, dentre outras coisas, que não aceitam certas imposições. Parece não ter sido o caso em relação à participação na Copa América. Não é?

Mesmo se extrapolarmos para outras modalidades, e até outros países, o número de atletas que de alguma forma se manifestaram criticamente sobre algum tema foi insignificante, ainda que seus respectivos posicionamentos sejam muito válidos e devam ser bastante valorizados.

Passando para a esfera técnica do jogo e do jogador de futebol, vemos cada vez mais jogadores pouco criativos, preferindo o passe burocrático ao drible, perdendo a capacidade de resolver ou desequilibrar uma partida. Aqueles poucos que ainda se destacam pela sua criatividade e pela capacidade de improvisar no ambiente de jogo, à exceção de Neymar e mais alguns, têm sua criatividade também cerceada, tanto pelos treinos atuais, quanto pelos esquemas táticos e treinadores. Os esquemas táticos, inclusive, precisam ser melhor compreendidos por todos. Não estamos nos referindo à forma de se posicionar em campo, mas ao próprio conceito de esquema. No entanto, isso é tema para um próximo texto.

Ainda assim, faremos uma breve interrupção para conceituar criatividade, visto que o termo, muito usado, costuma ser mal apropriado, exatamente por carência de conceituação.

Ensina o pensador Arnold Gehlen, que o ser humano é a única criatura capaz de, entre uma sensação e uma ação, ter um hiato para considerar, refletir, pensar, ter consciência. Nesse hiato, que é um nada-fazer extremamente ativo, o ser humano cria, corrige, refaz, confirma etc., o que gera um comportamento que talvez produza algo novo, algo para mudar o modo de viver. Ou seja, nesse hiato ele cria cultura. E essa cultura será seu meio ambiente, seu nicho ecológico. É da natureza do ser humano criar, sendo que essa criação se dá nos hiatos, nos intervalos entre ações necessárias. É na desnecessidade, no nada-fazer que nos tornamos humanos.

Carl Jung , um desbravador do inconsciente humano, afirmou que “tudo o que o espírito humano criou, brotou de conteúdos que, em última análise, eram germes inconscientes.” (JUNG, 1984, p. 379). Mais adiante ele diz: “Mas é também da fonte viva dos instintos que brota tudo o que é criativo; por isto o inconsciente não é só determinado historicamente, mas gera também o impulso criador” (JUNG, 1984, p.382).

Ou seja, é da natureza humana criar. É de nossa natureza, especialmente, porque nascemos e perduraremos incompletos por toda a vida. O que nos dá a natureza para realizar a experiência de viver, é insuficiente. Se, por um lado, somos conservadores, como toda criatura viva deste planeta, de outro somos obrigados a ser criativos para preencher essas faltas. Quando um jogador cria algo que não estava determinado, não faz mais que ser coerente com sua natureza humana. Reconhecer isso em um jogador é reconhecer sua natureza humana.

Voltemos à reflexão sobre a criticidade e a criatividade, mas, a partir de agora, sob o prisma da pedagogia da rua. Afinal, como a rua nos ensina a ser mais críticos e mais criativos?

A rua é um campo de disputa aberto e, como tal, é repleta de momentos de tensão e discórdia. É livre, mas não isenta de acordos. É auto-organizada e gerida, via de regra, pelas próprias crianças e jovens. No âmbito da rua, cabem a elas, crianças, a organização do jogo, a proposição das regras, as condições para que essas regras sejam cumpridas e a definição acerca do modo como jogarão. Por exemplo, são elas, crianças, que definem se irão atacar ou defender, se irão passar ou driblar, se foi falta ou não, se tal ação ou gesto vale ou não etc.

Os conflitos, diferenças de opiniões, pontos de vista e de repertórios, e a necessidade de tomar suas próprias decisões e resolver os próprios problemas inerentes ao jogo, sem a presença de um adulto, fazem com que os jogadores se tornem mais questionadores e desenvolvam um comportamento crítico. Entretanto, é justamente a “pedagogização” dessa prática, necessária ao “levarmos a rua para o âmbito escolar”, e a atuação dos professores e professoras, que contribuirão, de fato, para que os estudantes se tornem mais críticos e reflexivos.

Ao mesmo tempo, ao se dotarem dessa liberdade, podem criar à vontade, driblar à vontade, ocupar o espaço do jogo como melhor entenderem, imaginar suas jogadas e seus gols e se divertirem enquanto jogam futebol. Por sua vez, as responsabilidades num campo de pelada, ou na rua – as que ainda existem – são muito menores que aquelas atribuídas às crianças e jovens que iniciam sua prática esportiva em escolas de futebol e/ou clubes. Junto com essas responsabilidades, há ainda a censura aos comportamentos criativos realizada por treinadores e professores, fato que, futuramente, revelará atletas mais inseguros, com baixa autoestima e com medo de executar gestos criativos.

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[1] (A dinâmica do inconsciente. C.G. Jung. Petrópolis: Vozes, 1984).

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