PARTE 01 | A essência do trabalho de um treinador de futebol
A profissão de treinador apresenta um impacto significativo na melhoria do desempenho esportivo em diferentes níveis de atuação, partindo desde a orientação pedagógica em práticas recreativas na iniciação, seguindo às etapas de formação e desenvolvimento de atletas, e evoluindo até se atingir o alto rendimento de uma modalidade. Transcendendo resultados em jogos ou eventos, bem como conquistas em torneios ou campeonatos, o treinamento esportivo representa uma atividade social dinâmica que engaja vigorosamente treinadores e atletas. Ao nutrirem um relacionamento mútuo, enquanto os atletas tendem a aprender com o comportamento de seus respectivos treinadores, os próprios treinadores também expandem o seu aprendizado de acordo com as respostas de seus atletas em uma série de interações graduais, cíclicas e não-lineares. Trata-se de um processo de reciprocidade entre ensino e aprendizagem.
A fim de desenvolver as competências relevantes para a sua profissão, os treinadores esportivos podem participar de programas de educação formal, buscar oportunidades de mentoria com profissionais mais experientes, ou até mesmo se beneficiarem de vivências práticas individuais caso tenham tido uma carreira como atleta na modalidade. Independentemente do seu estilo de liderança, os treinadores esportivos fomentam um processo de planejamento, implementação e reflexão sobre as suas sessões de treinamento, visando aprimorar o rendimento atlético e atingir objetivos coletivos dentro e fora da atividade.
Especificamente no futebol, entretanto, considerando que os treinadores profissionais conduzem as suas funções e responsabilidades em um ambiente de constantes alterações, o seu trabalho inevitavelmente sofre com a urgência de expectativas por vitórias e rendimento convincente em curto prazo, cuja origem se sustenta na desordem proliferada entre os agentes que rodeiam o esporte. Como consequência direta dessa realidade no cenário nacional, por exemplo, a duração média de um treinador de futebol de elite no cargo já foi constatada em 65 dias durante o Brasileirão, restringindo o potencial do seu trabalho a pouco mais de dois meses (mesmo sabendo que no futebol apenas uma equipe termina a competição como campeã ao final da temporada). Tal contradição à importância prática do aprimoramento esportivo em uma modalidade coletiva de alto rendimento ilustra, possivelmente, um desencontro entre a preparação dos treinadores e as reais competências necessárias ao seu trabalho no alto nível brasileiro. Afinal, experiências educacionais simplistas e funcionalistas contribuem para a geração de concepções românticas e irrealistas da atividade.
No território brasileiro, o órgão responsável por governar, organizar e administrar a modalidade atende pelo nome de Confederação Brasileira de Futebol, popularmente reconhecida pelo acrônimo CBF. Como parte de suas iniciativas domésticas, a instituição lançou a sua própria unidade educacional em 2016, intitulada CBF Academy. Originalmente voltada a estruturar o currículo educacional aos treinadores de futebol do país, a CBF Academy arquitetou quatro licenças de treinamento com um volume total de 1000 horas de educação formal aos treinadores que estudam e operam no Brasil. Tais licenças referem-se a níveis de certificação que possibilitam aos treinadores trabalharem com programas de iniciação esportiva junto a crianças e adolescentes (Licença C), em categorias de base (Licença B), evoluindo progressivamente aos níveis profissionais da modalidade (Licenças A e Pro). Contudo, segundo um estudo acadêmico que contemplou 30 confederações esportivas do Brasil, incluindo a CBF, a formatação de programas educacionais a treinadores esportivos no país segue uma abordagem determinada por quem supervisiona as operações de cima para baixo (uma ação conhecida em inglês como top-down). Para expandir os formatos técnico-metodológicos e enriquecer um ambiente de aprendizagem colaborativo, o contexto real das experiências em torno da atividade e o rendimento esportivo vivenciado pelos treinadores devem ser levados em consideração na prática educativa dos profissionais.
Segundo a orientação do Conselho Internacional ao Treinador de Excelência (ICCE), a dinâmica de trabalho de um treinador esportivo deve respeitar o seu contexto social e organizacional, estimulando as suas competências de modo a possibilitar um melhor entendimento, interação e relacionamento com o seu respectivo ambiente. Logo, tomando como referência o direcionamento do ICCE, o objetivo do estudo voltou-se a mapear as competências que são percebidas como mais importantes ao trabalho dos treinadores de futebol profissional que atuam no contexto brasileiro. Ao constatar a necessidade de uma compreensão realista acerca do trabalho de um treinador de futebol no território nacional, o estudo em questão buscou capturar as experiências mais recorrentes no país de forma assertiva, beneficiando-se de depoimentos provenientes de 59 profissionais com alta credibilidade no Brasil.
Visão geral dos 59 profissionais que participaram deste estudo (em ordem de idade na data das entrevistas)
Os entrevistados envolvidos neste estudo contemplam 29 treinadores e 30 membros de comissões técnicas (7 auxiliares técnicos, 5 treinadores de goleiros, 10 preparadores físicos, 5 fisioterapeutas, 2 fisiologistas e 1 médico), que foram entrevistados no período de 14 de Janeiro a 16 de Abril de 2021. Conjuntamente, os treinadores em questão acumularam 3458 partidas oficiais na Série A do Brasileirão entre as temporadas de 2003 a 2020, que corresponde a 47,6% de todos os 7266 jogos nesse período de 18 anos. Considerando a relevância das comissões técnicas ao desempenho de um treinador, profissionais de diferentes funções foram convidados a participar do estudo devido ao seu envolvimento diário ao lado dos treinadores na prática. De um modo geral, os seus depoimentos fortaleceram uma exploração mais sistemática, visto que as suas experiências complementam a percepção das atitudes e do ambiente onde os treinadores operam. Para assimilar uma amostra abrangente ao território nacional, um esforço particular na confecção deste estudo se concentrou em convidar profissionais de origens distintas, priorizando o seu nível de conhecimento e buscando equilibrar o volume de jogos oficiais que cada treinador já tinha acumulado enquanto fora empregado durante a Série A. O único critério específico para participação no estudo correspondeu a comprovar se cada profissional já havia assumido o seu respectivo cargo em uma comissão técnica efetiva pelo menos uma vez durante o Brasileirão desde 2003.
Respeitando a natureza do estudo, bem como agindo de forma responsável para garantir que todos os profissionais entrevistados permaneçam anônimos e os seus respectivos depoimentos se mantenham igualmente confidenciais frente ao julgamento público, considerações éticas representam um aspecto primordial para sustentar esta investigação acadêmica. Portanto, além dos procedimentos metodológicos que foram rigidamente respeitados ao analisar, formatar e publicar o conteúdo científico original junto à comunidade acadêmica internacional nos âmbitos de gestão e ciências do esporte, esta versão adaptada em português acentua a prioridade dos autores em não expor nomes de pessoas ou instituições esportivas ao longo do texto.
Em suma, os entrevistados foram questionados a respeito das principais competências necessárias à condição de treinador profissional no futebol de alto rendimento do Brasil, compartilhando suas experiências profissionais e oferecendo exemplos práticos de acordo com as suas respectivas origens. As questões levantadas foram: Quais competências um treinador efetivamente precisa apresentar para ser bem-sucedido no Brasil? O que um treinador profissional deve fazer para ser valorizado em seu trabalho no país? Como um treinador consegue permanecer no comando técnico de sua equipe por mais tempo?
Contemplando a realidade do contexto brasileiro, este estudo qualitativo responde exatamente a seguinte pergunta:
Na profissão de treinador, quais competências são esperadas e valorizadas no alto nível do futebol brasileiro?
A PARTE 2 vai ilustrar e detalhar a complexidade que envolve o ofício no âmbito profissional, apresentando os depoimentos que sustentam as principais competências necessárias ao treinador de futebol no alto rendimento do Brasil.