O que faz um bom jogador? – Parte II

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Ronaldo Nazário, então na Internazionale: atribuir sentido às lesões o fizeram mais forte. (Foto: Reprodução/IG Esportes)

 
Não faz muito tempo, começamos aqui uma conversa sobre o que faz um bom jogador. Citei o exemplo do Alexander-Arnold, na semi-final do Mundial de Clubes, e como um espaço que ninguém viu só é possível com uma certa indisciplina do pensamento, por alguém que pensa e age fora das normas, fora da curva.
As duas características que citei no outro texto foram (e são) uma certa indisciplina do pensamento e uma certa negação, uma sensação de que é possível fazer mais e melhor no jogo jogado. Vocês podem ler melhor no texto.
Hoje, gostaria de dar continuidade à essa ideia, a partir de uma outra variável – e de uma rápida observação. Vejamos.

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Além das características que já citei, sinto que outra dessas coisas que faz um bom jogador, não sei se vocês concordam, é uma capacidade de atribuição de sentido. Deixem-me explicar melhor: há algumas semanas, fiz uma citação do Aristóteles que, como sabemos, nos separou dos animais exatamente pela capacidade de pensar. Só que pensar, neste caso, não significa apenas usar a razão, mas usar a razão e as palavras (animais não têm palavras) justamente para atribuirmos sentido às coisas que nos acontecem. As coisas nos acontecem na vida vivida e, com o tempo, damos a elas significados, atribuímos valores, fazemos algo com as coisas que nos fazem. Daí que a questão não esteja nas coisas em si, mas sim no que nós fazemos com elas.
Muito bem, quando penso no bom jogador (em qualquer modalidade), penso bastante naquele jogador que faz sentidos (ou seja, cria sentidos) de pelo menos duas formas diferentes: dentro do jogo e fora do jogo. Penso no jogador que não se intimida quando recebe uma bola sem espaço, que se sente motivado (e não restringido) nos maiores problemas do jogo, que procura os espaços que ninguém viu (portanto, que sabe ler nas entrelinhas), que entende o valor do fracasso, da pressão, do próprio medo, das limitações tático-técnicas que possa vir a ter, enfim… penso que tudo isso faz um bom jogador. Mas (e aqui está o pulo do gato), sinto que o bom jogador também é aquele capaz de atribuir sentido às coisas que lhe acontecem na vida vivida, fora do jogo jogado. Mais do que isso, é aquele que consegue levar o que lhe passa na vida vivida (exatamente pela superação da frustração, pelo cultivo da disciplina, pelo entendimento do tédio, pelo cuidado de si) para o jogo jogado. E isso, vejam bem, também faz parte das responsabilidades que cabem a nós, treinadores e treinadoras, que devemos sim cultivar nos nossos atletas essa capacidade de atribuir sentido às coisas que lhes acontecem, de dar sentido ao jogo que jogam (porque o jogo não tem um sentido determinado a priori), dar sentido ao jogo que são capazes de jogar (ou seja, que está por ser inventado) e, portanto, de dar sentido à vida que vivem e à vida que podem viver. Quando escrevo, como já fiz por diversas outras vezes, sobre o processo de humanização do treino/jogo, também é um pouco disso que quero dizer.

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Por fim, reparem apenas que esse negócio de ‘faz um bom jogador’, que coloquei no título, tem um duplo sentido. E isso é proposital: podemos falar tanto daquilo que o próprio jogador faz para ser bom como daquilo que a vida faz com o jogador e o torna bom, percebem? Se você preferir, de um lado o jogador como ponto de partida, do outro como ponto de chegada. Acho importante fazer essa distinção porque vocês sabem, tanto quanto eu, que é justamente do que falamos quando falamos do processo de treino – especialmente se pensarmos na superação do tecnicismo. Quando pensamos em educação (e é disso que estamos falando aqui, educação de jogadores, nos mais diversos níveis), pensamos em uma relação, em um componente de troca, no qual deixamos algumas coisas para o mundo, mas também recebemos coisas em troca, agimos sobre o mundo na mesma medida em que ele age sobre nós. E aqui, não posso deixar de perguntar: será mesmo que o nosso peso sobre o mundo é maior do que o peso do mundo sobre nós?
É justamente por isso que devemos ser tão rigorosos (no melhor sentido) no nosso trabalho como treinadores e profissionais do futebol em geral, porque nós também ‘fazemos’, de alguma forma, o bom jogador. Ele é fruto de si mesmo, da sua história, dos seus afetos, do seu pensamento, das suas ideias e das suas ações, mas também do peso do mundo, das coisas, das pessoas, da vida vivida.
A percepção desse processo de troca, e dos sentidos que o sucedem, é absolutamente fundamental para avançarmos no sentido de debates e práticas mais refinadas.
 

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