Por uma outra leitura da orientação corporal

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Diego Maradona: a orientação corporal pode refletir qualidades humanas – as boas e as ruins. (Foto: Reprodução/Agiuar Buenos Aires)

 
Não sei vocês, mas faz algum tempo que percebo um grande interesse, especialmente de treinadores e analistas mais jovens, sobre o tema do posicionamento corporal do atleta ao longo do jogo. De um lado, posso dizer que compartilho bastante desse interesse. Não apenas porque se trata de um elemento de fato fundamental do jogo jogado (especialmente para os mais detalhistas, dentre os quais me incluo), mas também porque, sendo um elemento do jogo jogado, trata-se de algo que pode ser cultivado no processo de treino – e poucas coisas são mais prazerosas do que o cultivo a partir do processo de treino.
Mas, por outro lado, sinto que existe uma aposta sutilmente errada. Acho que podemos deslocar um pouco melhor o debate da posição corporal. Explico: não acho que a questão esteja em puramente instruir o atleta a posicionar-se de determinada forma em determinados momentos. Afinal, talvez essa fosse uma preocupação demasiado técnica (e as preocupações demasiado técnicas podem se equivocar quando creem que existe um gesto ideal para resolver um dado problema). Não, acho que a questão é outra: aquela posição corporal, naquele momento do jogo, não reflete um problema maior? Aquela postura não reflete, de uma forma sutil, o jeito como o atleta se posiciona no mundo – e não apenas no jogo? Pois, se isso for verdade, então concordamos que o problema não se resolve do ponto de vista puramente posicional.
Vejamos.

***

Como alguns de vocês já sabem, minha defesa irrestrita está no sentido da formação humanizada do atleta e da humanização do processo de treino/jogo. Mas o que significa essa formação humanizada? Sinceramente, eu mesmo estou aprendendo com o tempo, não há referências tão claras neste sentido, mas hoje diria que a formação humanizada tem, pelo menos, duas características centrais: I) é uma formação em que as questões táticas, técnicas e físicas são posteriores aos problemas humanos (leia-se: são consequências deles) e II) é uma formação total, sistêmica, de razão e de afetos, de corpo inteiro – para o futebol e para além do futebol.
Digo isso porque se quisermos falar de posições corporais, seja na recepção de um passe, seja no fechamento de uma linha de quatro, seja em uma bola parada ou qualquer outra situação, não acho possível dissociar uma coisa da outra. Permitam-me dar um exemplo: certa vez, lembro de ter treinado um jovem que gostava de jogar como primeiro volante, mas que insistia em receber a bola dos zagueiros ou do goleiro inteiramente de costas para o campo adversário. Como vocês bem sabem, este não é o posicionamento mais adequado naquela função: é melhor posicionar-se tão lateralmente quanto possível, de modo que o atleta possa perceber, pela visão periférica, se há um adversário às suas costas ou, caso não haja, que ações ele pode tomar, desde o primeiro toque, para dar um prosseguimento adequado à jogada.
É claro que orientei o garoto algumas vezes neste sentido, mas isso também me deixou inquieto. Pense comigo: que tipo de mensagens uma dada orientação corporal dentro do jogo pode nos transmitir? Neste meu exemplo, posso interpretar o seguinte: talvez não seja apenas um jogador que recebe a bola de costas no primeiro terço, talvez seja um jogador fortemente condicionado pela bola. E aqui entra a questão que comentei anteriormente: se atacamos somente a posição corporal nos momentos do jogo, talvez estejamos de fato resolvendo um problema pontual, mas não resolvemos o cerne do problema, de modo que ele se repetirá, de outras maneiras, em outras situações do jogo. Por exemplo: numa outra situação, (como ocorreu de fato), talvez a sedimentação da memória do garoto lhe fez lembrar que, quando a bola viesse dos zagueiros, era adequado posicionar-se mais lateralmente, olhar sobre os ombros, abrir-se para o jogo (atenção aqui, voltarei neste ponto adiante). Mas num escanteio defensivo, antes da cobrança, ele estava novamente anestesiado pela bola, de modo que ainda não estava aberto ao movimento dos adversários às suas costas. Percebem como o problema, na verdade, não foi resolvido?
O que estou dizendo é que a posição corporal do atleta nos momentos do jogo não pode ser vista apenas como um problema pontual que se corrige mecanicamente, mas pode ser vista como um sintoma existencial que precisa ser interpretado – se quisermos, de fato, atingir camadas mais profundas na formação dos nossos atletas. Porque se o jogador joga de corpo inteiro, como nos diz o Professor João Batista Freire, e se corpo e mente não estão separados (ao contrário do que aprendemos pela herança cartesiana), é claro que as ações do atleta não refletem apenas formas particulares de posicionar-se no jogo, mas formas particulares de posicionar-se no mundo! Aquele mesmo exemplo, do garoto que recebe a bola de costas, também me faz crer, como escrevi acima, que talvez houvesse um certo grau de fechamento do garoto para o mundo, a diminuição do ângulo de recepção da bola em relação ao jogo, talvez denotasse um certo fechamento do ponto de vista realmente humano – e o jogo seria mais uma tela do que o filme.
E neste caso, você haverá de convir, fica evidente a importância da interdisciplinaridade e, portanto, da abertura. É preciso que estejamos, como sujeitos e como instituições, abertos às áreas correlatas, abertos ao diálogo entre as diferentes áreas. Porque, naquelas suspeitas que levantei acima, é claro que os psicólogos do clube podem nos dar informações absolutamente fundamentais. Os pedagogos e pedagogas do clube podem encontrar maneiras particulares de contribuir para que o atleta atribua sentido ao seu processo de ensino-aprendizagem. E talvez uma correção de rota, do ponto de vista humano, contribua na resolução de um desequilíbrio muscular, ou auxilie o trabalho das nutricionistas, ou então dê ao atleta novas visões do mundo e de si mesmo (por isso, aliás, acredito num papel fundamental da filosofia no processo formativo), que justamente por isso farão dele um outro atleta, a cada instante.
E pelo investimento no humano (que nunca será gasto), talvez o atleta saiba se perfilar melhor no campo – porque também vai aprendendo a se perfilar no mundo da vida.
Não há distâncias.
 

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