Sobre os jogos dentro do próprio jogo

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Javi Gracia: vários jogos dentro de um? (Foto: El Confidencial)

 
Leio no El País uma agradável entrevista com Javi Gracia, treinador do Watford, uma das surpresas deste início de temporada na Inglaterra. Após quatro jogos – um deles contra o Tottenham, diga-se – o Watford soma doze pontos, um começo brilhante. Evidente que os holofotes, nessas ocasiões, se voltam para o treinador. Neste caso, falamos de um profissional com passagens por Olympiacos, Málaga, Osasuña e Rubin Kazan, entre outros. O salto para a Premier League, em alguma medida, parece bastante razoável.
A frase que origina a manchete da entrevista é particularmente atraente: na Premier League, diz Gracia, há vários jogos dentro de um jogo. Segue ele (tradução livre):

“Há muitas influências de treinadores e jogadores distintos que têm uma repercussão no jogo. É uma liga muito rica não apenas no econômico, como também no tático. Em cada jogo há constantes modificações de sistema de jogo. Uma equipe joga com três centrais e, de repente, muda a defesa para [linha de] quatro. Há momentos em que joga mais direto, em que se buscam as segundas jogadas, quando em outros há mais pausa. Há muitos jogos dentro de um jogo.”

A reflexão de Gracia, como podemos observar, reside no campo da tática, mais especificamente das mudanças de plataformas que há durante um mesmo jogo. Em alguma medida, aliás, me parece que a chegada de Pep Guardiola à Inglaterra parece ter contribuído de maneira importante neste sentido, fazendo com que os adversários, para responderem aos problemas criados pelo Manchester City e pelo próprio jogo, também tenham adotado estruturas mais fluidas, por assim dizer (repare, aliás, como a própria seleção inglesa parece ter importado algumas das descobertas do City, como Kyle Walker como zagueiro e a participação ativa de John Stones no início da organização ofensiva, às vezes como um falso volante).
Mas aqui, prefiro ir por um outro caminho, um pouco mais amplo. Imagino, por exemplo, se os vários jogos dentro de um jogo são uma qualidade exclusiva da Premier League ou se, ao invés disso, são uma característica do jogo em si. Como defendemos anteriormente, o jogo parece ser uma rede de variáveis intrincadas, ondulatórias, que oscilam não exatamente de acordo com quem joga, mas de acordo com o próprio jogo. Não é o jogo que se adapta a quem joga, mas nós que nos adaptamos aos problemas por ele impostos. Neste sentido, atletas e treinadores são como atores e atrizes, mas com particularidades: representam não apenas um, mas vários papeis durante o jogo (pense nas estruturas fluidas de que falamos acima), em um palco vivo, cujo roteiro não é escrito a priori (é, no máximo, rascunhado), mas se faz em tempo real.
Repare, assim, no alcance da pluralidade exigida pelo jogo: é preciso que sejamos vários, pois o mesmo jogo que, em um certo instante, aceita um determinado papel, no instante seguinte o rejeita, e cabe a nós, atletas e treinadores, a mais rápida adaptação possível. Neste sentido, temos aqui um pé absolutamente fincado na formação, pois assim como é salutar a formação de atletas versáteis, o mesmo se aplica as outras funções dentro de uma equipe: quanto maiores forem os papeis potencialmente exercidos por cada um dos profissionais de dentro do clube, maiores serão as possibilidades, mais histórias podem ser escritas a partir de uma dada ideia.
É fundamental, neste sentido, perceber o jogo não como narrativa encadeada, linear, teleológica, mas como uma poesia de versos incertos, assimétricos, em nada lineares. Assim como um poeta não sobrevive apenas da leitura de poesias, treinadores e treinadoras não podem se alimentar apenas do futebol: é preciso sair do futebol para encontrá-lo, é preciso personificar a multiplicidade de que falamos acima, pois é assim que seremos práticos, sendo tão mutáveis quanto é o próprio jogo. Da mesma forma como não se banha duas vezes no mesmo rio, treinadores e treinadoras nunca são os mesmos, estamos em constante movimento. Aqui, aliás, pense bem: se um ser está em movimento constante, como é possível conhecê-lo, se a cada instante ele se torna algo diferente? Parece uma pergunta ingênua, mas não é – basta olhar atentamente para o jogo. Retomaremos este debate em breve.
Por fim, repare como essa percepção tem repercussões importantes no nosso treino, pois se julgamos que o jogo sempre acontece no plural, também precisamos julgar que os treinos, por sua vez, também o sejam. Como o treino será plural? Em linhas gerais, pelo método. Quanto mais próximo o treino estiver do jogo real, ou seja, quanto mais os treinos forem jogos e os jogos forem treinos, desde que haja uma intencionalidade definida, mais próximos estaremos do mosaico em que repousa o jogo. Assim como há pequenas peças dentro de uma grande peça que é o mosaico, há pequenos jogos, interligados, dentro de um grande jogo.
De fato, há vários jogos dentro de um.
 

 

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