Sobre os problemas do jogo ideal – e do treino perfeito

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Vocês sabem que há um vídeo relativamente famoso do José Mourinho, que salvo engano meu data de 2010, no qual ele faz uma observação muito interessante sobre o planejamento de um treino, talvez até uma previsão, que transcrevo literalmente abaixo. Ali, ele defende que qualquer pessoa que quiser montar um treino de qualidade pode fazê-lo, com dois ou três cliques num computador. Ele diz o seguinte:

O conhecimento está ao alcance de todos. (…) Você é jornalista, mas se amanhã disserem que tem que dar um treino à uma equipe, você só não estrutura um bom treino (…) só não organiza, se não quiser. (…) Uma coisa é o conhecimento que está ao alcance de todos, outra é a capacidade de produzir o próprio conhecimento. O fato do conhecimento estar ao alcance de todos é uma contribuição enorme para a preguiça mental. 

Lembro de ter assistido a esse video em algumas aulas do Prof. Alcides Scaglia, há cerca de cinco anos, mas hoje, com outros olhos, também vejo a questão de uma outra forma. Mourinho, diretamente ou não, ataca um problema fundamental, especialmente no processo de organização dos nossos treinos, seja no microciclo semanal, ou mesmo no médio/longo prazo. Vamos chamá-lo de problema do jogo ideal.

Aqui, entenda jogo ideal da seguinte forma: um determinado jogo – ou exercício, aplicado dentro de um treinamento, a partir do qual o treinador espera um resultado ótimo – sendo que a expectativa pelo resultado está estritamente ligada ao jogo aplicado. Se você preferir, é uma expectativa estritamente ligada ao método  Por exemplo, um treinador viu um jogo de manutenção da posse do Jurgen Klopp, com 6×6+1 num espaço de 30x25m, ficou encantado com o resultado (eventualmente desconsiderando o nível dos jogadores que um clube do tamanho do Liverpool têm à disposição) e replicou exatamente a mesma coisa no seu próprio treino, numa equipe sub-15 do interior do Brasil. Só que, por algum motivo, o jogo não deu muito certo. Ou seja, no mundo das ideias era um jogo maravilhoso, mas na realidade não foi. A conta não fecha.

Basicamente, é um dilema pelo qual todos nós, envolvidos com o processo de treino, já passamos por diversas vezes. De fato, Mourinho tem razão quando denuncia um certo comodismo, que nos atinge às vezes, que faz com que pensemos que um certo jogo ou um certo exercício tem propriedades quase que mágicas, sendo essas propriedades coisas do próprio jogo, como se fosse um jogo universal, de modo que aquele mesmo jogo, se aplicado em qualquer outro lugar, com quaisquer outros atletas, teria rigorosamente os mesmos resultados. Só que aqui, talvez nos escapem pelo menos duas coisas importantes: vamos chamar a primeira de movimento, e vamos chamar a segunda de sentido

Quando me refiro ao movimento, penso da seguinte forma: as coisas, como as vemos, não são – elas estão. Portanto, não existe apenas um caráter de transitoriedade nas coisas – que faz com que elas possam estar de um jeito, depois de outro, como também existe um certo caráter de não-essência, o que significa que se um determinado jogo deu muito certo em um determinado treinamento, não é que a causa tenha sido o jogo em si, mas seja, talvez, a qualidade das relações que se criam dentro do próprio jogo. É disso, afinal, que falamos quando falamos de complexidade: as qualidades daquilo que é tecido junto. Se jogarmos dois jogos de 6×6+1 em 30x25m, com os mesmíssimos jogadores, a mesmíssima comissão técnica, em dois dias seguidos, vocês sabem tanto quanto eu que serão dois jogos completamente diferentes. Um jogo nunca será igual ao outro – e para isso basta lembrarmos da básica premissa da imprevisibilidade, que está no coração do jogo. 

Por isso é tão importante a segunda variável que apresento, que é a variável do sentido. Um jogo será tanto melhor – o que não significa que seja mais legal, são coisas muito diferentes – quanto mais refinadas forem as nossas capacidades de atribuir sentido ao que nos acontece. Ou seja, é preciso que tanto nós, treinadores e profissionais do futebol em geral, quanto os próprios atletas envolvidos no processo – que se alimentam da nossa capacidade pedagógica, que todos tenhamos sempre a mente a importância de refinar a nossa capacidade de dar sentido às coisas – justamente porque, como dissemos acima, as coisas não são, elas estão. O que faz com que uma jogo deixe de ser uma coisa e  passe a ser outra não é o jogo em si, mas exatamente o sentido que damos a ele. Se meu modelo de jogo está baseado na retração do meu bloco defensivo  em busca de contra-ataques, será que um jogo manutenção da posse de 6v6+1 em 30x25m, como vimos numa sessão qualquer do Klopp, pode, de fato, fazer sentido no meu processo? Veja bem, talvez até possa, mas isso está diretamente relacionado com a nossa capacidade de dar sentido – e de fazer, sutilmente ou não, com que nossos atletas deem sentido – ao processo de treino.

Assim, gostaria de propor a vocês que saíssemos um pouco, nos nossos processos de treino, dessa ideia de jogos ideais, ou mesmo dos treinos perfeitos, de modo que nós não nos demos muito ao direito de apenas reproduzir um determinado jogo ou exercício que chegou até nós, como se o segredo estivesse no jogo em si. Qual é o seu modelo de jogo? Quais são as suas filosofias enquanto treinador? Quais são os princípios e/ou os conteúdos que você gostaria de trabalhar naquela semana e naquela sessão? Para muito além do seu método, quais são as suas didáticas? Qual é, honestamente, a nossa capacidade atual de dar sentido aquilo que nos acontece? 

Pois este é um ponto realmente decisivo, sem o qual ficamos muito limitados – assim como podem ficar nossos treinamentos.

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