Sobre os sentidos do futebol

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Klopp e os jogadores do Liverpool comemoram: sinais de caminho, significado e afetos. (Reprodução: RTE)

 
Há algum tempo, por ocasião do meu trabalho de mestrado, tenho me dedicado um pouco mais às palavras, ao peso que as palavras têm e também aos significados que as palavras podem trazer. No futebol, como em qualquer outro lugar, precisamos das palavras mais do que elas precisam de nós.
Nesta semana, gostaria de refletir um pouco sobre a palavra sentido. A partir dela, podemos falar sobre treinamento, formação, modelos, estratégias, táticas e etc. Divido este texto em três partes. Em cada uma delas, apresento um olhar diferente do sentido e como cada um desses olhares se realiza pelo futebol.
Vejamos.

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Em primeiro lugar, acho possível olhar para o sentido no futebol a partir do caminho. O que é um modelo de jogo, por exemplo? O modelo de jogo é um caminho. Um caminho diferente da estratégia, porque o modelo é maior, resiste ao tempo, enquanto que a estratégia é mais pontual, sofre alterações sutis, de acordo com o adversário, de acordo com nós mesmos, de acordo com o modelo. Mas, nos dois casos, estamos falando de caminhos.
Dar sentido ao nosso trabalho (para além de uma direção) é sinônimo de dar um caminho. Nessas horas, não me esqueço daquela passagem de Alice nos País das Maravilhas, quando Alice diz não saber para onde vai, ao que o Gato Louco responde algo do tipo: ‘para quem não sabe onde vai, qualquer caminho serve’. Traçar um sentido é traçar um caminho, um caminho específico, um caminho que nos agrada, um caminho que gostaríamos de fazer. Se você preferir, traçar um sentido é traçar um caminho ideal. Ou seja, de certa forma, o sentido é idealista. Mas o jogo não é ideal, o jogo é real.
Este é o motivo por que vários colegas, dentre os quais eu me incluo, defendem metodologias de treinamento baseadas no jogo – não nos recortes do jogo. Um garoto que dribla cones estará cada vez melhor na arte de driblar cones, mas não necessariamente na arte de jogar futebol. Para tornar-se artista no futebol, este garoto precisa jogar. Isso não significa jogar apenas o jogo formal, mas significa jogar jogos, com oponentes reais, em espaços diferentes, com objetivos diferentes, com regras diferentes, não para fazer repetições quaisquer, para fazer repetições inteligentes, mas precisa jogar. Se formamos nossos jogadores para driblar cones, escolhemos um sentido. Se formamos jogadores para jogar, escolhemos outro.
Por isso, pensar no sentido como caminho faz tanta diferença.

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Mas também é possível olhar para o sentido no futebol a partir do significado. Por exemplo: pense na organização dos nossos treinamentos. Quando organizamos um treino, fazemos isso de qualquer jeito? Bom, espero que não. Cada exercício (ou cada jogo) tem a ver com o sentido da sessão, que por sua vez se encaixa no sentido do microciclo, que por sua vez é uma parte do mesociclo (assim sucessivamente) e todos eles conversam com o modelo, com aquele caminho que estabelecemos lá em cima. Ou seja, talvez exista um sentido anterior ao treino (caminho), mas também existe um sentido posterior ao treino – o significado.
Encontrar um significado quer dizer, no mínimo, duas coisas: primeiro, que aquele jogo, aquela sessão, aquela semana de treinamentos, tudo aquilo significa alguma coisa para alguém. Quando uma parte deste ato de treinar, por menor que seja, não significa nada para alguém (ou pior, quando não significa nada para ninguém) é sinal claro de que erramos a mão. Depois, se o significado deve ser encontrado, então ele não existe em si, ele não foi determinado, ele nasce da busca e, portanto, ele é subjetivo, é único e intransferível. A isso, aliás, nós podemos chamar de experiência. Um mesmo treinamento tem significados completamente diferentes para cada pessoa envolvida no processo.
Para um treinador ou treinadora, não basta que o treinamento (para ficar neste exemplo), faça sentido apenas para si. É preciso, ao mesmo tempo, que o treinamento faça sentido (tenha significado) para um atleta, para todos os atletas, para toda a comissão, para o clube. O significado precisa ser o mesmo para todos os atletas? Claro que não! Como dissemos acima, os significados são subjetivos – e discordo frontalmente daqueles que pensam que, para formarmos uma equipe, os atletas devem pensar a mesma coisa ao mesmo tempo. Os atletas devem pensar diferente, devem tornar-se quem são, e a formação como equipe não acontecerá porque todos os pensamentos têm a mesma cor, mas sim porque todas as cores dialogam entre si. Tudo é um.
Se quisermos que nosso trabalho tenha um sentido, um significado, é preciso então que nossos colegas tenham as devidas ferramentas para fazê-lo. Quanto menor for a capacidade de reflexão dos nossos atletas, menores serão as possibilidades de atribuição de sentido. E educar o pensamento dos atletas (junto do nosso próprio pensamento) também é parte da nossa profissão.

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Por fim, também é possível olhar para o sentido no futebol a partir do afeto. O que isso quer dizer? Quer dizer que nossos treinamentos e nossas atitudes, como treinadores e treinadoras, não devem apenas estimular o pensamento dos nossos atletas. Devem também fazer com que eles sintam coisas.
Quanto mais indiferentes nossos atletas forem aos nossos treinamentos, à nossa fala, às nossas ideias (ou quanto menos chegarmos aos afetos), maiores serão as nossas barreiras, menores serão nossas possibilidades de construirmos laços humanos, maiores serão as distâncias entre todos nós, envolvidos no processo. Por isso, na nossa formação como treinadores e treinadoras (formação que não termina), não basta nos dedicarmos aos conhecimentos ou às competências, como se os cursos de formação fossem um grande supermercado, onde recolhemos nas gôndolas as competências que gostaríamos e julgamos não ter. Tornar-se treinador ou treinadora é principalmente um caso de sentir, de fazer sentir, de fazer sentir ao longo do tempo, de educar os afetos, de deixar-se educar pelos afetos.
Mas então tornar-se treinador ou treinadora é deixar-se levar. Quando os afetos nos atingem, é porque nos deixamos atingir, é porque estamos abertos, é porque mostramos nossas fraquezas e, exatamente por isso, nos damos o direito de sermos humanos. Nossa humanidade não se faz apenas na força, amigos e amigas, se faz nas fraquezas. Por mais contraditório que pareça, olhar apenas para cima pode ser uma grande fragilidade, assim como admitir e compartilhar nossas fraquezas pode tornar-se, às vezes de imediato, uma força irresistível.
Mas é preciso estarmos abertos. Estando abertos, encontramos sentido.
E pelo sentido, sentimos.
 

 

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