Sobre a quebra da primeira linha de pressão

Entre para nossa lista e receba conteúdos exclusivos e com prioridade
Entre para nossa lista e receba conteúdos exclusivos e com prioridade

Paco Jemez, hoje no Granada: atacar com qualidade é um compromisso inegociável. (Foto: Diário AS)

 
Em um artigo distante, escrito com prazer, dediquei um breve espaço ao meu olhar sobre a superação da primeira linha de pressão do adversário, especialmente quando o adversário deseja claramente o desarme. Aqui, gostaria não apenas de retomar essa discussão, como aprofundá-la um pouco mais.
Este assunto, na verdade, parte de uma inquietação minha, quando vejo as equipes de alguns colegas treinadores e treinadoras fazendo um esforço importante, em um tiro de meta, por exemplo, para abrir bem os zagueiros ao lado da grande área, às vezes bem próximos à linha de fundo: isso permite não apenas um ótimo ângulo de passe para os goleiros, como permite um posicionamento ótimo para os zagueiros, que não apenas ganham tempo e espaço para analisar a próxima decisão como – mais importante – recebem o passe de frente para o jogo, evitando os perigos que estão para além daquilo que a visão periférica pode enxergar. Minha inquietação surge quando todo este esforço é feito para que, ao menor sinal de pressão do adversário, após dois ou três toques na bola, seja dado um chutão – não um passe longo, mas um chute qualquer.
Meu ponto é que um jogar de qualidade exige, dentre outras coisas, uma espécie de compromisso, exige a assinatura de um contrato hipotético que estabelece onde se quer chegar. Quando uma determinada equipe idealiza e pratica um percurso de construção ofensiva, ela assume um compromisso consigo mesma. Não vamos quebrar a bola? Ótimo, então quais são os mecanismos que iremos utilizar para que, ao mesmo tempo, não nos livremos da bola e superemos a primeira linha de pressão do adversário com qualidade?
Aqui, me ocorrem uma série de situações: a circulação da bola, por exemplo, é um recurso absolutamente fundamental. Nós não circulamos a bola por circular, é preciso desfazer a ideia da circulação como uma mera obrigação, uma norma desinteressada para qualquer equipe de bom nível: nós circulamos a bola para movimentar o adversário, para sutilmente fazê-lo ceder espaços. Neste sentido, é evidente que o papel do goleiro é fundamental, pois um goleiro capaz de participar com qualidade da circulação da bola é um elo perfeito entre um lado e outro do campo, é uma isca para atrair o centroavante e abrir espaços às suas costas, é a garantia de superioridade numérica na primeira fase de construção, é um atacante. Para muito além do clichê, o goleiro realmente precisa pensar e sentir que é, de fato, o primeiro dos atacantes de uma equipe que deseja, mais do que tudo, jogar bem futebol.
Aliás, a superação crônica da primeira linha de pressão adversária exige uma mudança importante de mentalidade da equipe que ataca: por exemplo, o pressing do adversário não precisa ser visto como uma ameaça, ele é um convite. Quando uma dada equipe se estrutura para construir por baixo desde os primeiros metros, ela deve saber, perfeitamente, que está convidando o adversário para pressionar. Se o adversário recusa o convite, ótimo: vamos superá-lo no próprio campo, talvez porque ele saiba dos riscos de nos pressionar. Mas se ele aceita, isso é igualmente salutar, é exatamente o que nós queríamos! Eles querem jogar o nosso jogo, não é preciso temor. Agora, passamos a bola, circulamos para o outro lado, voltamos alguns metros caso não haja um passe vertical seguro, nos movimentamos uma, duas, dez vezes!, olhamos por sobre os ombros, evitamos qualquer toque desnecessário, cuidamos da qualidade do nosso passe – não basta passar, é preciso passar ao jogador certo, no instante certo, no local certo, na velocidade certa e nada disso é certo-, levamos a bola ao outro lado, damos opções ao portador, resistimos! Resistimos até o último instante.
Ou seja, sair jogando por baixo pode muito bem ser visto como uma decisão moral. É uma forma de resistência, uma espécie de subversão: se os outros decidem lançar a bola ao alto, ótimo. Nós jogaremos por baixo e vamos aguentar até o último instante. Se, em algum momento, não tivermos nenhuma outra solução que não seja quebrar a bola, perfeito: respeitemos o jogo. Mas vamos cultivar uma construção em que este momento, de quebrar a bola, esteja cada vez mais longe, se torne incomum, raro, por qualidade nossa ou pelo respeito do adversário. Este processo, leitores e leitoras, é absolutamente doloroso– porque confronta o atleta consigo mesmo, com seus próprios medos, com a possibilidade latente do erro -, mas é nessa dor, neste desconforto (estimulado exatamente no treino), que aprendemos a cultivar a própria resiliência, é ali que se descobrem (des-cobrem) as forças que já moravam no atleta, já existiam, apenas não haviam sido despertadas. Como já conversamos anteriormente, talvez precisemos dar aos atletas a oportunidade de sair das luzes e enxergar, a si mesmos, no escuro. E isso não é simples. Quebrar, com qualidade, a primeira linha de pressão do adversário, especialmente em um clube que não cultiva este ideal desde as categorias mais baixas, é um processo absolutamente complexo do ponto de vista humano– e assim deve ser tratado.
Por isso, me admiram várias das críticas, que brotam aqui e ali, das equipes e dos treinadores que desejam construir por baixo desde o começo. Jogar bem futebol não é um adorno, não é um enfeite: jogar bem futebol é um compromisso. Mas nos resignamos de tal modo que as críticas aos que resolvem jogar bem parecem maiores, muito mais severas, do que aos que preferem apenas jogar. Ao invés de poesia, de uma prosa poética, ao invés da arte, parece que nos resignamos com o trivial, como se o futebol devesse apenas refletir os limites e a melancolia que às vezes enevoam as nossas próprias vidas cotidianas, e não como se o próprio futebol, no mais alto nível, pudesse nos acolher, nos deixar atônitos e extasiados ao mesmo tempo, nos fazer jogar das arquibancadas do estádio ou mesmo do sofá de casa.
Neste sentido, jogar bem futebol é uma decisão corajosa, tão artística e, especialmente, humana. E jogar bem futebol desde o primeiro toque, os primeiros metros, superando a primeira linha, é não apenas o primeiro passo, como é o passo decisivo. Um tiro de meta diz muito sobre o espírito de uma equipe.
O que se faz logo depois dele, também.
 

Compartilhe

Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on whatsapp
Share on email
Share on pinterest

Deixe o seu comentário

Deixe uma resposta

Mais conteúdo valioso