Sem intenção

Entre para nossa lista e receba conteúdos exclusivos e com prioridade
Entre para nossa lista e receba conteúdos exclusivos e com prioridade
Eu dormia quando senti baterem em meu ombro. Acorda! Esfreguei os olhos e lembrei a Oto, meu morcego de estimação e confidente, que não gostava de ser acordado durante os jogos amistosos da seleção. Era quando eu tirava os atrasos de sono.
 
“Mas é importante”, guinchou o morceguinho. “Também dormi e só acordei agora, quase no fim do jogo”.
 
“O que é então?”, perguntei, e ele contou que teve um pênalti marcado pelo juiz no começo do segundo tempo e o comentarista da TV disse que não o apitaria porque o zagueiro não teve a intenção de derrubar o atacante.
 
“Ah, Oto! Isso não tem a menor importância”, respondi sonolento. Aquele assunto me aborrecia, pois eu não suportava essas conversas de comentaristas de arbitragem. Dei uma desculpa qualquer e voltei a me concentrar no sono.
 
Mas o morcego continuou tagarelando no meu ouvido: “Como é que a gente pode saber qual é a intenção do outro? O juiz consulta o jogador antes de apitar?”.
 
Oto tinha razão: aquilo não fazia sentido. De qualquer maneira o quiróptero não me daria trégua mesmo, a TV passava os melhores piores lances e resolvi acordar de vez. “Vamos ao dicionário”, convidei.
 
Fomos ao Houaiss, que nos foi de pouca ajuda. Disse-nos que intenção é aquilo que se pretende fazer. É um propósito, um plano, uma idéia, uma coisa que está lá dentro de cada pessoa. Se é assim, como podem os juízes e os comentaristas de futebol saber o que se passa dentro dos jogadores? Ainda mais no tempo tão curto de uma jogada. O léxico nos sugeriu ainda saltar da página 1631 para a 2692: lá estava o antepositivo tend, que quer dizer dirigir-se para, tender para, inclinar-se. De forma que a tarefa do juiz seria perceber qual a inclinação do jogador quando ele toca a mão na bola dentro da área, por exemplo, ou qual a sua tendência.
 
Quem sabe suas excelências, os senhores árbitros de futebol, não possuam uma competência inata de ler nas expressões faciais, nas torções corporais ou tensões manuais dos jogadores suas intenções de cometer ou não penalidades?
 
O pior é que quando uma coisa entra na minha cabeça ela só sai quando fica resolvida. O sono não voltaria mais enquanto a intenção estivesse ocupando meu cérebro. Decidido, chamei o morcego: “Vamos ao Merleau-Ponty”, eu disse.
 
“Quem?”, perguntou o morcego.
 
“Aquele do livro grosso, vermelho, que fica ao lado direito da minha escrivaninha”, respondi.
 
O filósofo da fenomenologia da percepção não é fácil. Deu-nos trabalho garimpar o que havia nele para nos ajudar a entender melhor nossos queridos comentaristas especializados e juízes de futebol quando julgam as ações dos jogadores pelas intenções (ando desconfiado de que essa coisa de julgar intenções é mais dos comentaristas que dos juízes). Valeu a pena, mas nos causou uma enorme surpresa: o pessoal da TV tem razão e fui eu que os julguei mal. De fato, há uma intenção contida em tudo que desejamos. Portanto, ao observador meticuloso talvez não escape a intenção por trás de um chute, de um esbarrão, ou de um carrinho dado por um jogador de futebol. Sei que não é fácil perceber isso no átimo de tempo que dura uma jogada decisiva, mas essa dificuldade acomete somente a nós, simples mortais; aos especialistas da bola, escudados por seus microfones e apitos, é perfeitamente possível.
 
O Sr. Merleau-Ponty ainda nos disse, trocando em miúdos, que tudo aquilo que nós explicamos sobre alguma coisa é verdadeiro, pois pensamos de acordo com nosso ponto de vista. Portanto, todas as vezes que o juiz e o comentarista julgarem a intenção do ato cometido pelo jogador, eles acertam. Não há como errar, pois, na verdade, eles estão julgando suas próprias intenções e não as dos jogadores.
 
A essa altura Oto se descabelava, ou melhor, eriçava todos os pelos da sua cara de rato. Demorei a tirá-lo do estupor: “Vamos, Oto, vamos falar com Aurora, nossa reserva de sabedoria”.
 
“De jeito nenhum!”, retrucou o morcego. “Aquela megera de rapina quer me comer com rodelas de batata! Bem sei”.
 
Com muito custo, levei-o à entrada da caverna e chamei a coruja. Ela nos atendeu, sempre gentil, Oto escondido no bolso de minha camisa, e lhe contei o que nos atormentava.
 
“Tenho uma idéia”, ela disse. “Em minha toca mantenho um aparelho de TV aparentemente igual aos outros, mas que pode ser sintonizado em um canal diferente de todos os demais. Ele realiza na tela nossos desejos. Quase nunca o assisto porque ele sempre me causa decepções profundas”.
 
“Decepções com quem?”, perguntei.
 
“Comigo mesma”, respondeu Aurora.
 
“Pois eu gostaria de ver um jogo apitado por um juiz segundo as intenções dos jogadores”, eu disse. “Só tem um detalhe: eu queria levar Oto comigo, mas ele acha que na primeira oportunidade você vai transformá-lo em banquete”.
 
“Bobagem!”, ela disse. “Ele é cismado comigo. Eu jamais faria mal ao seu melhor amigo”.
 
Consultei Oto, ele concordou, e lá fomos nós para o buraco de Aurora. Esgueirei-me com dificuldade pela abertura da toca. Lembrei-me que preciso diminuir a cerveja e aumentar as caminhadas. Lá dentro, para minha surpresa, abria-se um amplo e confortável salão. Ao lado de um sofá florido estava o televisor, aparentemente normal, até que a coruja sintonizou o canal Z33. Um jogo de futebol começava. De um lado uma equipe toda de vermelho, do outro uma de amarelo, no centro, o árbitro, de negro.
 
No começo, nenhuma novidade: bola para cá, bola para lá, a partida seguia morna, até mesmo enfadonha. De repente um dos alas da equipe vermelha cruzou a bola na direção da área adversária e ela tomou rumo inesperado. O goleiro esticou-se todo, mas a redonda alojou-se caprichosamente no canto superior direito. Gol! Não, o juiz apitou somente tiro de meta.
 
Vaias da platéia, protestos dos jogadores de vermelho, uma confusão danada, mas não teve jeito. Segundo sua excelência, não era intenção do ala fazer o gol, mas sim cruzar; o goleiro, sem dúvida, teve a intenção de defender a pelota.
 
Nova saída, bola do time amarelo e o volante avançou pela direita. Ele serviu o centroavante, que, na hora de fazer o giro na direção do gol, foi travado pelo zagueiro. Pênalti claríssimo! Mas o juiz mandou a jogada seguir. A confusão foi maior ainda. Teve torcedor invadindo o gramado, veio a polícia, mas não adiantaram os protestos. Segundo sua excelência, a intenção do zagueiro era apenas pegar a bola, jamais o adversário.
 
No seguimento da jogada, a equipe vermelha, com três toques, deixou o meia-atacante na cara do goleiro. O afoito volante de contenção dos amarelos veio correndo por trás, desceu-lhe o sarrafo e não acertou nada. O meia passou pelo goleiro e saiu com bola e tudo pela linha de fundo. “Pênalti!”, assinalou o austero juiz.
 
Passo seguinte, ele foi cercado pelos jogadores de amarelo, tomou três ou quatro empurrões e, imediatamente expulsou um zagueiro que nem se aproximou dele. N
ão se aproximou, mas, segundo sua excelência, tinha a intenção clara de dar-lhe um soco, via-se em seu semblante. E, sem qualquer sombra de dúvida, o volante amarelo premeditou a falta na área; só não a concretizou por falta de habilidade, mas seu comportamento traduzia com perfeição suas más intenções.
 
Nem a penalidade foi cobrada, nem o jogo prosseguiu. Sua excelência saiu de campo escoltado pela polícia, aos berros e aos chutes dos jogadores de ambas as equipes, e sob uma chuva de celulares. Ao todo, a partida durou exatamente 13 minutos. Fora do estádio a polícia prendia todos os torcedores que, segundo ela, tinham a intenção de criar algum tipo de confusão.
 
Eu e Oto estávamos aos berros, possessos, decepcionados.
 
“Esse juiz é louco”, gritava o morcego. “O seu Merleau-Ponty diria que, num caso desses, o juiz estava era apitando suas próprias intenções. Assim não há torcedor que agüente!”.
 
E já nos preparávamos para sair quando percebi que Aurora se mantinha estranhamente calada. Esgueirando-se, aproximara-se e estava a menos de um passo de mim. Oto, confiante nas garantias oferecidas pela coruja e excitado pelo jogo, saíra de meu bolso e, depois de esvoaçar pelo salão, pousara em meu ombro esquerdo. No exato instante em que eu me levantava do sofá, Aurora deu o bote.
 
Só deu tempo de eu me virar para a direita e colocar minha mão entre o bico da ave e o pescocinho do quiróptero. A bicada furou-me o dedo. Com o sangue escorrendo, investi contra Aurora. Peguei-a pelo pescoço e gritei: “Você disse que eu podia confiar em você. Oto poderia estar morto não tivesse eu percebido suas malignas intenções”.
 
“Desculpe-me”, disse a coruja. E recolheu-se ao fundo da toca.
 
Eu entendia, não era a intenção de Aurora bicar Oto, mas era sua natureza. Contra isso ela nada podia fazer. Lá fora a lua terminava seu passeio. Os primeiros clarões anunciavam um belo dia que eu não veria do fundo de minha caverna.

Para interagir com o autor: bernardo@universidadedofutebol.com.br

 

Leia mais:

Trocando as bolas
Aurora
Uma questão de critério
 

* Bernardo, o eremita, é um ex-torcedor fanático que vive isolado em uma caverna. Ele é um personagem fictício de João Batista Freire.

Autor

Compartilhe

Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on whatsapp
Share on email
Share on pinterest

Deixe o seu comentário

Deixe uma resposta

Mais conteúdo valioso