Fé cega

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Ontem, pela manhã, dei de cara com Arnaldo estrebuchando no salão da caverna, fora do lago onde mora. Estava roxo e se debatia como uma minhoca assustada. Corri e o joguei de volta na água. Por uns trinta segundos ele desapareceu no lago; confesso que temi por sua vida. Subitamente voltou à superfície, ofegante, lerdo ainda, mas animado; a cor voltara ao normal. 

– O que aconteceu? – perguntei-lhe – Como foi parar fora da água?

Tive que lhe pedir que refreasse a sofreguidão, que se acalmasse um pouco, pois, dessa maneira eu não conseguia entender sua fala de bagre. Aos poucos, Arnaldo fez-se inteligível e pude entender: ele assistia ao noticiário noturno na televisão que fica num dos cantos do salão da caverna, quando, sobre a realização da Copa do Mundo de 2014, o presidente da Confederação Brasileira de Futebol começa a falar. Interrompi-o:

– Mas você não enxerga Arnaldo, como pôde assistir ao Ricardo Teixeira pela televisão? 

– Mas é como se eu enxergasse – redargüiu o bagre -Assim que ele começou a falar eu vi que era ele, sua voz inconfundível, aquela segurança de quem sabe aonde quer chegar, única no futebol brasileiro. 

O fato é que Arnaldo entusiasmou-se além da conta com a entrevista. Lembrando minha conversa com o bagre, consigo visualizar a cena: o presidente da CBF falando e meu amigo torcendo-se no lago, erguendo metade do corpo fora da água, cabriolando e aplaudindo com suas nadadeiras. Enquanto cofiava o barbilhão, o troglóbio dizia de sua admiração pelo homem que, segundo ele, foi o responsável pela emancipação do futebol brasileiro e pela definitiva internacionalização de nossa arte de jogar o esporte bretão; inclusive, palavras do bagre, pela inclusão de um item fundamental nos créditos de nossa balança comercial: a exportação de craques. Centenas, milhares deles foram vendidos ao exterior, da Espanha ao Azerbaijão. Além disso, mais que espalhar a cultura brasileira por todo o mundo, obrigamos os brasileiros, se quiserem ver futebol de qualidade, a sintonizar a TV nos canais internacionais, incorporando, dos estrangeiros mais civilizados, a língua, os costumes, os consumos, e aquilo que Arnaldo chama sempre, referindo-se aos europeus mais evoluídos, de finesse

Perguntei-lhe o que achava da realização da Copa do Mundo de Futebol no Brasil, em 2014, e o bagre me disse que achava o mesmo que o Sr. Ricardo Teixeira. Insisti e ele me respondeu, um tanto ofendido, que, se o presidente da CBF achava que era bom para o Brasil, ele assinava embaixo. 

– Será o maior acontecimento da década, senão do século – proclamou Arnaldo. 

– Mas você acredita na lisura dos procedimentos, na transparência das licitações? – perguntei, ao mesmo tempo argumentando em sentido contrário ao do bagre.

– Os fins justificam os meios – ele disse.

E creio que, com isso, Arnaldo pretendia encerrar o diálogo, pois que o incomodava profundamente a saraivada de críticas ácidas esgrimidas diariamente pela mídia mal esclarecida do esporte brasileiro. Acredita o bagre que a perseguição feita pela mídia contra homens do quilate do presidente da CBF, um verdadeiro brasileiro, é absolutamente vergonhosa. Um desses hereges da imprensa brasileira, dizia-me Arnaldo, vocifera diariamente em seu pasquim eletrônico, que toma chá de cadeira esperando a queda do Ricardo Teixeira.

– Ora – indignou-se o peixe – Ricardo Teixeira!!!, como se ele tivesse intimidade para chamar dessa maneira uma das figuras mais respeitáveis da cena nacional. Ah, e tem aqueles que contestaram a escolha da filha do presidente para integrar o comitê organizador da Copa do Mundo. Afinal, é claro que a filha, o filho ou a esposa são muito mais confiáveis que qualquer outra pessoa desligada de parentesco. E ficamos aqui no Brasil com essa história do judiciário proibir a contratação de parentes em cargos públicos. Se a gente não puder mais confiar nossos serviços aos parentes, a quem mais os confiaríamos. E além do mais, a CBF não é um órgão do governo. A solidez de uma sociedade prende-se, acima de tudo, aos laços familiares. A família deve transcender o teto da casa onde moram pai, mãe, irmãos, e estender seus braços ao trabalho, à política, quiçá à religião. Padres devem casar, seus filhos devem ser os coroinhas, seus cunhados os sacristãos, suas mulheres as confessoras. O que o nosso querido presidente da CBF faz não é outra coisa que dar o exemplo, que demonstrar ser tão importante o cargo que ocupa que não o dividiria com quem não seja seu parente, e próximo. 

Ainda pensei em mencionar as suspeitas de lavagem de dinheiro e a história de Liechtenstein, mas o bagre estava ficando novamente roxo. Infelizmente não me segurei e falei dos contratos com a Nike. Arrependi-me. Arnaldo passou de vermelho a roxo, torceu-se todo, espumou, deu um salto e caiu uns três metros fora do lago, e dessa vez, mesmo que o tenha jogado imediatamente de volta à água, ele não voltava a si. Percebi seu corpo inerte rolando no fundo do poço, apanhei-o com um puçá remendado que eu guardava de antigas pescarias de siri e o levei para meu tanque de lavar roupas. Arnaldo só voltou a si com respiração boca a boca. Presenteei-o com uma camisinha da CBF e uma foto do presidente Ricardo Teixeira sorrindo, e ele voltou, amuado mas feliz, para o poço que habita e de onde me faz companhia em minhas frias noites de inverno neste fundo de caverna para onde me retirei, cansado dos nepotismos e lavagens de dinheiro desse mundo de meu deus que é o nosso grande Brasil.

Para interagir com o autor: bernardo@universidadedofutebol.com.br

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