Bolas, laranja e gente

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A proposta do presente espaço é fazer uma abordagem crítica e didática sobre o trabalho da mídia no futebol. Sem melindres ou adulações, a ideia é usar exemplos concretos para discutir conceitos de jornalismo esportivo e propor discussões que possam enriquecer o debate.

A história desta primeira coluna começa no dia 11 de setembro de 2012. O ex-jogador Paulo Cézar Caju, campeão do mundo com a seleção brasileira em 1970, publicou em seu blog no site do jornal O Estado de S. Paulo uma coluna intitulada “O fundo do poço se aproxima” (http://tinyurl.com/9xn585j).

No texto, Caju avalia o atual momento do futebol brasileiro a partir de diferentes aspectos. O colunista critica jogadores, árbitros, treinadores, dirigentes e até jornalistas.

“Por fim, ainda temos de aturar os analistas de computador, comentaristas que nunca chutaram uma laranja e ‘resolvem’ todos os problemas com uma arrogância irritante”, escreveu.

Criticar jornalistas é sempre uma seara intrincada. Poucas profissões lidam tanto com o ego. É extremamente difícil tomar partido em um grupo que vive de “publicar antes”, “apurar melhor”, “escrever com mais fluidez” ou coisas do tipo.

Jornalismo é competitivo por natureza, seja entre diferentes veículos ou mesmo no ambiente das redações, e incita posturas que muitas vezes resvalam até na arrogância.

Por isso, era de se esperar que Caju não ficasse incólume. A resposta mais célebre foi publicada no dia seguinte, no blog que o jornalista Leonardo Bertozzi mantém no site da ESPN (http://tinyurl.com/9etsdmz).

O post chamado “Sobre bolas e laranjas” tem um perfil muito mais emotivo do que a coluna de Caju. Bertozzi relata experiências pessoais como goleiro em campeonatos de escola e em jogos no condomínio. Também diz que brinca de chutar laranjas com a filha Laura, e usa tudo isso para falar sobre a relação que tem com o futebol.

A segunda coluna, até pelo tal perfil emocional e menos ranzinza, suscita empatia maior do que o texto inicial de Caju. Contudo, as duas publicações servem como mote para uma discussão um pouco mais abrangente: os requisitos inexoráveis para a formação de um jornalista esportivo.

O uso de ex-jogadores na crítica esportiva não é exclusividade do Brasil e nem do futebol. Aliás, não se trata sequer de uma prática recorrente apenas no esporte. No entretenimento, por exemplo, críticos são assiduamente rotulados como “cineastas frustrados”, “músicos frustrados” ou simplesmente “frustrados”.

Um dos grandes exemplos disso é a revista francesa “Cahiers du cinéma”, fundada na década de 1950. A publicação foi fundada por André Bazin, Jacques Doniol-Valcroze e Joseph-Marie Lo Duca, e posteriormente reuniu alguns dos principais nomes do cinema francês (François Truffaut, Claude Chabrol, Jean-Luc Godard e Eric Rohmer, só para citar alguns).

A revista chamou atenção por assumir posturas contundentes e por publicar críticas verborrágicas de gente que desejava mudar a cara do cinema. As análises pessimistas sobre a área eram oriundas de profissionais que estavam dispostos a provocar mudanças ou que militavam em busca de um modelo diferente.

O problema é quando a crítica é vazia, e isso leva a um primeiro ponto sobre a formação da crítica no esporte. Ataques à qualidade do jogo ou à qualidade do espetáculo são comuns – e muitas vezes pertinentes, diga-se –, mas não fazem sentido se forem simplesmente para tomar partido.

O também ex-jogador Tostão mantém uma coluna no jornal Folha de S.Paulo e lamenta frequentemente o atual nível técnico do futebol no Brasil. Mas usa isso como mote para falar sobre a formação de atletas e o trabalho de base que (não) é feito no país, e isso dá sentido à análise inicial.

Um jornalista precisa saber escrever. Parece redundante dizer isso, mas a proficiência no uso do idioma escrito é cada vez menos disseminada.

Um jornalista precisa saber fazer análises contextualizadas, que tentem perquirir determinado assunto e não reflitam apenas os gostos pessoais. Mesmo em espaços opinativos, um jornalista deve expor argumentos e embasar teorias. A opinião rasa não é relevante.

Isso nos leva a outro ponto: analisar demanda visão sistêmica. E visão sistêmica demanda entendimento. Isso não tem nada a ver com a vivência esportiva de quem produz o comentário.

Vivemos em um país de ranço tecnicista, que ainda ensina esporte com uma perspectiva militarizada e não fomenta o entendimento sobre o jogo. Independentemente da modalidade, o atleta baseia a eficiência em um misto de empirismo e instinto. É o famoso “fazer o certo sem saber por que fez”.

O atleta que não compreende o jogo pode até analisá-lo. Basta citar experiências e relacionar acontecimentos recentes com situações que ocorreram durante a carreira dele. Contudo, alguém que não sabe os meandros da modalidade não consegue colocar isso em perspectiva.

Isso mostra que a formação de analistas esportivos está intrinsecamente ligada à formação esportiva como um todo, e aqui eu não falo do alto nível competitivo. A visão sobre o jogo pode ser desenvolvida na escola ou no condomínio citados no texto de Leonardo Bertozzi.

Compreender o jogo, todavia, não é apenas saber como as peças se deslocam ou como os lances acontecem. O entendimento passa por algo básico, mas raro: notar que o esporte é feito de pessoas.

Pessoas são complexas, cheias de camadas e multidimensionais. Portanto, nenhuma análise é completa se não unir o viés técnico do esporte a um contexto pessoal.

Tostão escreveu certa vez que o comentarista ideal reuniria características diferentes de vários profissionais que estão na mídia esportiva brasileira atualmente.

Na minha opinião, o comentarista ideal teria de pinçar deles a visão técnica, o domínio do idioma e o entendimento do jogo. No entanto, só seria ideal se pudesse desenvolver também um conhecimento profundo sobre gente.

Para interagir com o autor: guilherme.costa@universidadedofutebol.com.br

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