O media training no futebol

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A decisão da liga profissional de futebol dos Estados Unidos (MLS), disputada no último domingo encerrou a passagem do inglês David Beckham pelo Los Angeles Galaxy. Antes da despedida, porém, o meio-campista de 37 anos deu um exemplo de comportamento para atletas e figuras públicas de todo o mundo.

O episódio aconteceu em uma entrevista coletiva antes da partida entre o Galaxy e o Houston Dynamo. Beckham conversava com jornalistas, e um deles usou um iPhone como gravador. O aparato estava posicionado na bancada, na frente do jogador, e começou a tocar.

Beckham interrompeu a entrevista e perguntou se o jornalista queria que ele atendesse. Entre risos, o próprio astro inglês olhou o celular e respondeu: "Desculpe, mas não é Samsung. Eu não posso":


 

A reação de Beckham remete a uma entrevista coletiva de Ronaldo. O "Fenômeno" anunciava no evento um contrato de publicidade com a empresa de telefonia Claro, e isso permeou todas as respostas dele. Sempre que usava afirmativas, em vez do tradicional "sim", o maior artilheiro da história das Copas do Mundo dizia algo como "é claro".

As trajetórias de Beckham e Ronaldo em campo são indiscutíveis. Ambos também são indiscutíveis como marcas de sucesso. Uma coisa tem relação com a outra, é claro. Mas o sucesso dos dois como personalidades está alicerçado em algo muito maior do que apenas desempenho.

A construção de um ídolo depende, evidentemente, de uma série de fatores imprevisíveis. Mas qualquer tentativa de fabricar personalidades consumidas pelo grande público passa por respeito. Não apenas ao próprio público, mas às marcas que essa figura representa.

Aí entra um conceito que funciona muito bem no mundo corporativo, mas que ainda é pouco disseminado no esporte: o media training. Atletas, técnicos e dirigentes são porta-vozes das instituições que defendem. Portanto, precisam ser preparados para um uso eficaz do espaço que a mídia oferece.

A etapa inicial de qualquer treinamento para porta-vozes é exatamente a compreensão desse papel. Uma personalidade que representa uma instituição não pode se comportar como uma pessoa qualquer. Em última instância, não pode simplesmente porque os erros de uma figura pública têm repercussão maior.

A figura pública que entende o que ela representa pode evitar muitos problemas. No esporte, pululam exemplos contrários. Um caso de repercussão internacional aconteceu quando o atacante italiano Mario Balotelli, então jogador da Inter de Milão, foi a um programa de TV e vestiu, sem saber que estava sendo gravado, uma camisa do rival Milan – relembre o episódio:


 

Um porta-voz precisa entender as nuances do cargo que ele ocupa. Isso inclui aspectos como saber a história da instituição, conhecer os principais ídolos e entender costumes do público que o segue. Um atleta do Grêmio, por exemplo, precisa saber que deve evitar roupas e acessórios vermelhos. Um jogador do Internacional também tem de fugir do azul.

Conhecer um pouco sobre história pode evitar muitas gafes. Pode evitar, por exemplo, que um jogador diga o nome errado do clube no momento da apresentação. O lateral Gustavo Nery, quando foi contratado pelo Sport Club Corinthians Paulista, disse que seria uma honra defender o “Corinthians Futebol Clube”. Alguém na sala o alertou e disse: "É Sport". E ele, completando a lambança: "Corinthians Esporte Clube".

Depois de conhecer a história da instituição e entender um pouco sobre o público, é necessário entender o que a marca tem a dizer. Isso vale para clubes, entidades e até para patrocinadores. Um atleta de sucesso comercial não é apenas o que vence, mas o que se torna relevante para os parceiros. Para isso, é fundamental saber como interagir com a mídia e transmitir corretamente o que os anunciantes têm como bases.

Essa preparação institucional é o que justifica a quarentena aplicada por algumas empresas a novos funcionários. A Nike é um exemplo de companhia que não permite que um porta-voz saia falando com a imprensa antes de ele ser corretamente preparado.

O processo de condicionamento de um porta-voz também passa pelas coisas que ele não pode fazer ou falar. É fundamental que ele tenha noções de limite, sobretudo em assuntos mais polêmicos.

Além de tudo isso, é necessário pensar em "como falar". Um bom porta-voz usa de modo favorável a linguagem corporal, sabe escolher as palavras adequadas e direciona de forma correta até o olhar. É a pessoa que usa nomes dos entrevistadores, agradece a cada pergunta, fala pausadamente, faz explicações claras e não cria polêmicas desnecessárias.

Mano Menezes, ex-técnico da seleção brasileira, era criticado por muitos motivos. Todas as avaliações negativas, contudo, eram relativizadas pelas entrevistas elucidativas e pelo tom cordial que ele usava no tratamento com a mídia. A despeito de não ser uma figura carismática, o comandante sabia se comportar como figura pública.

Também nesse aspecto, Mano Menezes e Luiz Felipe Scolari têm perfis dicotômicos. O novo comandante da seleção brasileira é mais autêntico, dá declarações mais fortes e muitas vezes cria polêmicas simplesmente para desviar foco. Logo na apresentação, Felipão comprou briga com o Banco do Brasil ao indicar a empresa como emprego ideal para quem não quer lidar com pressão.

Ainda que a polêmica sobre isso tenha sido muito exagerada, a declaração de Scolari foi apenas um exemplo de uma entrevista coletiva recheada de gafes. O presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), José Maria Marin, foi ainda mais prolífico em trapalhadas. Ele trocou o nome de Carlos Alberto Parreira, a quem se referiu como Antônio Carlos Parreira. E explicou vetos a outros treinadores para justificar a escolha da comissão técnica, como se os profissionais contratados fossem a última opção.

Para completar, a entrevista coletiva foi agendada para o mesmo horário em que a Fifa anunciava, em São Paulo, os finalistas da bola de ouro, prêmio aos melhores jogadores da temporada. A CBF criou um evento desastrado e uma concorrência desnecessária.

Tudo isso complementou o festival de gafes que a CBF havia iniciado quando demitiu Mano Menezes. Desde a escolha do porta-voz até a falta de um discurso ensaiado, a entidade transformou todo o episódio em um exemplo do que não fazer no relacionamento com a mídia.

Comunicação demanda planejamento, e qualquer deslize no planejamento pode comprometer totalmente os objetivos da instituição. Uma gest&atild
e;o tão conturbada quanto a da CBF chega a suscitar dúvidas sobre as reais intenções de tantos erros.

Porque erros, é bom que se diga, fazem parte de qualquer processo de comunicação. Instituições são feitas de pessoas, e ídolos também são pessoas. Pessoas são falíveis, fazem besteiras e não conseguem carregar personagens durante todo o tempo.

No começo do texto, citei Ronaldo como um exemplo de alguém que sabe lidar com a mídia e trabalhar a favor de seus parceiros comerciais. O atacante também é exemplo de quem escorregou e fez diferentes tipos de besteiras durante a vida. A pergunta que fica é: por que ele conseguiu passar por isso sem destruir a imagem positiva e sem comprometer o valor que possui fora de campo?

A resposta é comunicação. De forma empírica ou não, Ronaldo sempre manejou muito bem o espaço que o desempenho esportivo ofereceu a ele. O atacante sabe como se relacionar com a mídia, fala de um jeito simples e dificilmente dá uma declaração que contrarie o personagem que o ídolo Ronaldo representa.

Em outro ponto nessa linha está o atacante Adriano. Não cabe aqui uma discussão sobre os problemas que ele enfrenta, mas é necessário dizer que a comunicação do que acontece na vida dele é extremamente complicada.

As faltas, os problemas pessoais e os conflitos profissionais de Adriano sempre vazaram. E pior: o atacante nunca usou tudo isso para construir uma imagem mais simpática. Nunca tentou sequer comover o público.

Mesmo quando falou sobre as intempéries da vida pessoal, Adriano foi o que é fora dos microfones: lacônico, fechado e seco. É claro que a personalidade é um direito dele, mas é impossível se comunicar bem sem entregar mais do que isso. Mesmo que seja um discurso ensaiado, próprio para os microfones.

Atualmente, o exemplo mais bem acabado no esporte brasileiro é o do atacante Neymar. O jogador do Santos era tímido e pouco eloquente no início da carreira, até por ser apenas um garoto de 16 anos. Com o tempo, a experiência e uma boa preparação, o camisa 11 transformou-se num dos mais eficientes comunicadores do país.

Porque é isso, afinal: Neymar é um comunicador. É por isso que tudo que ele faz, fala ou usa vira tendência. É por isso que todas as crianças se identificam com ele. É por isso que ele é referência.

Em tempo: Na despedida de Beckham, o Los Angeles Galaxy bateu o Houston Dynamo por 3 a 1 e conquistou o bicampeonato da MLS. O terceiro gol foi marcado de pênalti, aos 48min do segundo tempo, um minuto antes de o inglês ser substituído e ovacionado, e a infração foi cobrada por Keane. Um anticlímax que não combina nada com o quanto os norte-americanos entendem de entretenimento e esporte…
 

Para interagir com o autor: guilherme.costa@universidadedofutebol.com.br
 

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