O resgate da noção de força coletiva foi o grande legado que 2013 ofereceu ao Brasil. Foi o ano dos protestos e das manifestações, e isso independe de um julgamento sobre o teor ou o formato escolhido por esses movimentos populares.
O fato é: pessoas foram as ruas seguidamente e reclamaram de uma decisão do poder público. O aumento de R$ 0,20 nas tarifas de transporte público, cerne inicial dos protestos, foi congelado por causa dessa pressão popular.
Ah, mas os protestos, como cartazes cansaram de anunciar, não eram apenas por R$ 0,20. E os resultados também não se restringiram ao congelamento do preço da tarifa. Mais do que isso, o fato relevante nessa história foi mostrar que é possível mostrar força coletiva de forma pacífica e que a força coletiva consegue exercer pressão contundente na administração pública.
No futebol, o Bom Senso F.C. é o correspondente desses movimentos. Jogadores criaram um grupo para debater rumos da gestão da modalidade no Brasil, motivados por uma insatisfação coletiva sobre o calendário proposto pela CBF para a temporada 2014.
O Bom Senso F.C. começou como um grupo de capitães e líderes de poucas equipes, mas evoluiu rapidamente até se tornar uma força coletiva verdadeiramente representativa no futebol nacional. Prova disso é que o movimento conseguiu organizar seguidos protestos em rodadas do Campeonato Brasileiro.
Inicialmente, o calendário de 2014 foi o correspondente aos R$ 0,20 das manifestações populares. No entanto, o Bom Senso F.C. teve habilidade para não conduzir uma discussão limitada e egoísta. Os atletas, protagonistas do espetáculo, resolveram cobrar condições para que o nível do show evolua.
O resultado das manifestações populares de 2013 é a grande incógnita para este ano. Haverá eleições em 2014 (governadores, senadores, deputados e presidente da República), e existe uma curiosidade natural sobre o efeito que o movimento popular terá.
Também paira uma curiosidade sobre os próximos passos das manifestações, movimentos que desde o início se anunciaram acéfalos, apartidários e desprovidos de interesses abscônditos. As reuniões populares nasceram de um sentimento de insatisfação coletiva e depois amainaram, mas essa insatisfação coletiva não sumiu. Ela segue ali, à espera de um novo estopim.
A mesma curiosidade cerca o Bom Senso F.C. em 2014. O grupo direcionou esforços iniciais em cinco pilares: calendário, férias, pré-temporada, adoção de práticas de fair play financeiro e participação de atletas em conselhos técnicos de entidades representativas. Até o momento, o coletivo de jogadores conseguiu atenção da mídia e mudanças representativas no calendário deste ano. Entretanto, todos os esforços para ampliar a discussão foram ignorados.
O último estágio na linha evolutiva de manifestações do Bom Senso F.C. é uma greve geral de atletas no futebol brasileiro. Greve geral. No ano em que o país vai receber a Copa do Mundo. O impacto midiático disso seria gigantesco.
Diante da falta de habilidade de autoridades do futebol brasileiro para lidar com um movimento embasado e disposto a ter discussões densas, contudo, a greve parece ser apenas questão de tempo. Ou de R$ 0,20.
O futebol brasileiro começa 2014 pensando em parar. O país voltará a receber uma Copa do Mundo depois de 64 anos, mas ainda luta para criar fóruns que permitam discussões sobre gestão sem depender de ameaças, greves ou outros tipos de protestos.
Em uma democracia madura, discussões como o valor da tarifa do transporte público, a segurança ou as férias de qualquer classe de trabalhador deveriam ser tão efetivas quanto incentivadas. No Brasil, esse tipo de movimento mais assusta do que ajuda.
Ressalte-se que o Bom Senso F.C., taxado por muitos de movimento elitista, tem base totalmente contrária. Sim, o grupo é conduzido por jogadores que ganham muito e que ainda assim reclamam de férias e condições de trabalho. Mesmo se fosse um debate egoísta, faria sentido – afinal, QUALQUER UM tem direito de brigar por esses tópicos, sem qualquer relação com o valor do salário. No entanto, todas as discussões do grupo têm sido voltadas ao contexto.
O Bom Senso F.C. não reclama apenas da grande quantidade de jogos no futebol brasileiro, por exemplo. Reclama de um time da primeira divisão nacional passar de 70 jogos em um ano, enquanto o Remo fez menos de 30 partidas em 2013. Os gestores do futebol brasileiro têm uma enorme oportunidade para aproveitar o movimento de atletas como estopim para mudanças em diferentes âmbitos da administração.
Os últimos dias ofereceram boas perspectivas disso. Na Inglaterra, a Premier League não teve um intervalo sequer na semana do Réveillon. Houve rodada completa entre os dias 1 e 2 de janeiro, por exemplo.
Só que isso não pode ser retirado de contexto. Em primeiro lugar, o futebol inglês trabalha com uma paralisação de quase três meses entre as temporadas. Por causa disso, diminui as folgas no fim do ano. Outro aspecto relevante é que os elencos são moldados para esse cenário.
No Brasil, o mercado de dezembro / janeiro tem sido extremamente fraco. Poucos foram os times que contrataram – ao contrário, a maioria abriu mão de atletas para reduzir a folha salarial. Com menos jogadores, qual é a equipe nacional preparada para uma maratona de partidas que demande bom uso de várias peças?
Ah, e para a discussão não ficar apenas em calendário, as ligas esportivas dos Estados Unidos também não pararam. E a NFL (futebol americano) teve jogo no último domingo com temperatura abaixo de 20º C. Sim, menos de 20º C. Com estádio lotado e jogadores expostos a essa intempérie.
A questão aqui é: como eles conseguiram vender ao menos alguns ingressos para uma condição tão adversa? O que justifica a ida de um torcedor ao estádio para encarar isso?
No Brasil, o choque de realidade veio com um tio meu nas festas de fim de ano. Avô de um garoto de cinco anos, ele sempre foi frequentador de estádios. O neto ainda não sabe como é ver futebol in loco.
“E nem vai saber, se depender de mim, enquanto a situação continuar dessa maneira”, disse meu tio. O medo no futebol brasileiro é muito maior do que o frio.
Quis iniciar 2014 com todas essas discussões porque esse é o grande tema do futebol brasileiro no ano. Mais do que a Copa do Mundo, o país precisa aproveitar o ambiente criado na temporada passada e repensar vários aspectos da gestão e da comunicação no esporte. Para isso, é fundamental que se crie ambientes saudáveis e que se fomente o debate. Caso contrário, a briga será por muito mais do que R$ 0,20.