Fatos e valores

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Em obra que, em língua portuguesa já tem quinze anos (refiro-me ao livro Razão, Verdade e História, Dom Quixote, Lisboa) Hilary Putnam radicaliza a recusa em aceitar a pertinência epistemológica da divisão entre juízos de facto e juízos de valor. De acordo com Moore e Russell, o termo fato denota um conjunto complexo de entidades que existem, independentemente do modo como são pensadas. Moore argumentava que o termo bom, por exemplo, era uma propriedade não natural e não cabia às ciências da natureza estudá-la, pois que as suas propriedades não eram de ordem física. A introdução, na Idade Contemporânea, da dicotomia fato-valor foi elaborada por Max Weber, dado que lhe parecia perniciosa a influência dos valores ocidentais sobre as demais formas de vida do planeta. Ele afadigava-se em encontrar resposta, para a questão de saber se as normas de ação e os pressupostos de validade tinham um caráter de universalidade ou se decorriam de um determinado contexto cultural. Max Weber julgou ter solucionado o problema da objetividade, nas ciências sociais e humanas, ao adiantar que, sempre que um investigador procura compreender um fenômeno social, deve fazê-lo, tendo em consideração quatro tipos ideais de comportamento:

– o comportamento que utiliza meios racionais, para alcançar fins racionais;

– o comportamento que, ao utilizar meios racionais, visa atingir fins irracionais, isto é, o comportamento orientado por valores;

– o comportamento que é guiado pela emoção;

– o comportamento que se rege pelos costumes e hábitos.

Weber foi-se apercebendo que o tipo de ação predominante, no século XX, era a do pensamento tecnocrático, ou seja, o que utilizava meios racionais (físicos e matemáticos), tentando alcançar fins também racionais. Com uma dinâmica muito especial, a burocracia não aceitava, nem o caos, nem a desordem, “propondo uma seriação e uma planificação da acção social, assente sobre os critérios de rigor, de sistematização e optimização dos recursos humanos e materiais”. Foi neste quadro que se potenciou a implementação das instituições sociais e governativas e se fixaram as regras e os modelos de acção das referidas instituições. Só que, ao julgarem-se possuidoras de uma racionalidade impecável, as instituições governamentais e as que vivem do erário público solidificam-se num modelo fechado de organização e alérgicas à transformação e à crítica. O próprio Max Weber nos alerta para que não deixemos que os juízos de valor se intrometam nos processos de investigação e nas instituições, afim de que a racionalidade tecnocientífica, e só ela, seja o princípio norteador. Para Weber, “a escolha que um ser humano faz, em qualquer momento da sua vida (e as escolhas do homem de ciência não são exceção) manifestam a presença de certos valores (…). Mas esse nível de subjectividade deve desaparecer sempre que o trabalho científico se impõe, já que, para Weber, este domínio da pesquisa humana se caracteriza pela procura da objetividade de um conhecimento que se quer da ordem do empírico e não da ordem do preferível (…). Para Weber, é a verdade factual que deve orientar a atividade analítica do cientista, independentemente dos motivos pessoais que o levaram a escolher os problemas e os temas que investiga”. Para Max Weber, um juízo de valor não pode ser verdadeiro, porque não pode ser aceite por todas as pessoas.

Daqui se infere que, fundamentado mesmo em Max Weber, é difícil a um governo aceitar críticas, pois que as julga decorrentes de juízos de valor e não de juízos de facto. E às críticas mais sonoras e de comentadores mais conhecidos o governo normalmente responde que elas refletem os anseios dos partidos da oposição e não têm por si qualquer solidez científica ou racional. Se não há pressupostos universais onde assentam os critérios de racionalidade, o governo observa que é ele que a possui, já que é ele que se encontra ao serviço do País, ao mesmo tempo que os discordantes dos órgãos da Comunicação Social se encontram, sem o dizerem, ao serviço de interesses inconfessáveis. Mas uma pergunta se impõe, aliás na esteira de Apel e Habermas: há, ou não, um discurso ético, que possa informar a ação dos agentes sociais? A tecnocracia resolve, absolutamente, todos os problemas? Pode, ou não, a ética transformar-se num método racional de resolução dos conflitos e de observação do trabalho executado? Estas questões podem aplicar-se às políticas desportivas. Podem (disse eu). É que nem sempre há a vontade de algumas pessoas responsáveis. É bem mais fácil continuar com os mesmos métodos e portanto onde praticamente os valores não cabem. Dá menos trabalho. Depois, um “agente do desporto” com valores morais torna-se incómodo, para dirigentes ditos desportivos, que toda a vida viveram sem eles e que são afinal verdadeiros semeadores de demagogia. E nem por isso deixam de falar, com ênfase professoral, a uma legião de basbaques, que os escutam, como se lhes devessem vassalagem. Como se, no Desporto, factos e valores não despontassem do mesmo paradigma científico.É que o Desporto nasceu como Ética e, sem Ética, não se entende como prática desportiva.

*Manuel Sérgio é antigo professor do Instituto Superior de Educação Física (ISEF) e um dos principais pensadores lusos, Manuel Sérgio é licenciado em Filosofia pela Universidade Clássica de Lisboa, Doutor e Professor Agregado, em Motricidade Humana, pela Universidade Técnica de Lisboa.

Notabilizou-se como ensaísta do fenômeno desportivo e filósofo da motricidade. É reitor do Instituto Superior de Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares do Instituto Piaget (Campus de Almada), e tem publicado inúmeros textos de reflexão filosófica e de poesia. 

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