A grande revolução a fazer no futebol

Entre para nossa lista e receba conteúdos exclusivos e com prioridade
Entre para nossa lista e receba conteúdos exclusivos e com prioridade

O Edgar Morin, num livro de vários autores, Éduquer pour l´Ére Planetaire, escreveu, na página 26: “A ideia de verdade é a maior fonte de erro que se possa imaginar – o maior erro existe, quando nos julgamos possuidores do monopólio da verdade”. Porque sou um simples teórico do Desporto (embora as minhas leituras, a minha investigação e o ter convivido e esbanjado aprendizagem com verdadeiros mestres do “fenômeno desportivo”) não é sem receio que me lanço ao tema, em epígrafe. Aliás, já tanto se escreveu sobre o futebol, espíritos de escol e puros oportunistas, que muitos serão os que pensam que pouco mais haverá a acrescentar. No entanto (e não é a primeira vez que o faço) não viro a cara ao risco e adianto que o futebol (e portanto o desporto) precisa, para continuar a desenvolver-se, de uma revolução científica ou, segundo Bachelard, de uma rutura epistemológica. Porquê? Porque, normalmente, quando se fala de futebol, quase sempre em monólogos ou diálogos arrebatados e arrebatadores, nunca se faz do Homem, na sua integralidade, o objeto de estudo, mas a tática, os erros da arbitragem, problemas de ordem econômica e biomédica, etc. Assim, o futebol parece ser ciência, não do Homem, mas da sua ausência. No futebol de muitos estudiosos e “agentes do futebol”, o termo Homem designa, não o tema fundante das falas ou dos escritos, mas apenas um intervalo entre palavras, palavras, palavras, ou seja, entre verdadeiros obstáculos epistemológicos. Tenho para mim que o desporto é um dos aspetos da motricidade humana . Nele, estuda-se, teoriza-se, pratica-se uma atividade humana que é “jogo e movimento e agonismo e instituição e projeto” (Gustavo Pires). Uma atividade humana muito próxima do domínio público e que dificilmente escapa, por isso, às controvérsias inflamadas do senso comum. Mas sempre uma atividade humana…

Marcos Guterman, jornalista brasileiro e doutor em História, pela USP, é o autor do livro O futebol explica o Brasil (Editora Contexto, S. Paulo, 2009) onde se lê: “O futebol é o maior fenômeno social do Brasil. Representa a identidade nacional e também consegue dar significado aos desejos de potência da maioria absoluta dos brasileiros. Essa relação, de tão forte, é vista como parte da própria natureza do país – as explicações, para o fenômeno, vão mais na direção da Antropologia que da História. O que este livro mostra é que o futebol, pelo contrário, não é um mundo à parte, não é uma espécie de Brasil paralelo. É pura construção histórica, gerado como parte indissociável dos desdobramentos da vida política e econômica do Brasil. O futebol, lido corretamente, consegue explicar o Brasil” (p. 9). Que o mesmo é dizer: porque o conteúdo das ciências humanas são práticas significantes, capazes de transformar o Homem, a Vida, a Sociedade e a História, elas transgridem o conceito positivista de ciência; nelas, há mais do que natureza, há também cultura, há mais do que razão, há também sentimento, há mais do que história, há também profecia, há mais do que factos, há também valores, há mais do que mathesis, há também desejo, há mais do que movimento, há também intencionalidade. O estatuto epistemológico das ciências humanas (e portanto da motricidade humana e do futebol) diz-nos que as ciências da natureza, onde predomina a física e a matemática, não têm condições para determinar o vivido. Por isso, muitos cientistas do desporto, que reduzem o gesto desportivo a números e que buscam apoio tão-só em autores de língua inglesa, e portanto empiristas até à medula, situam as ciências humanas na parte inferior da escala do saber objetivo.

Do que venho de escrever se infere que o treinador desportivo e o professor de Educação Física, na Escola (cfr. “A Escola e o Desporto em Portugal”, de Vítor Serpa, na edição de 2014/9/6, deste jornal) têm muito mais que trabalhar e avaliar do que as capacidades físicas e os aspetos técnico-táticos do rendimento de uma equipa. Para algumas pessoas, que vivem em 2014 (e não em 1914) as ciências da natureza (ou empírico-formais) são objetivas, indiscutíveis, em contraste com as ciências humanas que, situadas na ordem dos valores e das significações, não podem matematizar-se, nem objetivar-se. Em linguagem coloquial e decerto vincada pela minha ignorância, eu permito-me lembrar a estes cientistas que a física e a microfísica fornecem, em muitos casos, explicações distintas e divergentes do mesmo fenômeno. E nem por isso se aponta, na microfísica, defeitos, carências ou fraquezas de ordem científica. No futebol (ou seja, em plena área das ciências humanas) podem repetir-se, em muitas situações. as palavras de Jorge Luís Borges (cito de cor): “Não posso dar-te soluções para todos os problemas da vida. Nem tenho respostas para as tuas dúvidas e receios. Mas quero escutar-te e procurá-las contigo”. José Mourinho já afirmou convicto. “O meu pensamento sobre o futebol nasce da união universidade-futebol”. E chega mesmo a dizer: “Um clube de futebol deve viver em torno das ideias do seu treinador”. Pep Guardiola referiu, com naturalidade, em 20/7/2009, no Barça: “O grande desafio, para nós, é manter o espírito, as ideias da temporada anterior”. Para José Mourinho e Pep Guardiola, os êxitos e até a naturalidade expositiva e convincente do treinador resultam, muito sumariamente, de ter ideias confirmadas pela prática. E, para ter ideias, também é preciso estudo, certas relações interdisciplinares e organização. Volto ao Edgar Morin, no livro acima citado: “O conhecimento não é a acumulação de dados ou de informações, mas a sua organização” (p. 38).

A grande revolução epistemológica a fazer no futebol é esta: o futebol é o humano, na sua complexidade, que o pratica. Portanto, é o humano, na sua complexidade, quer deverá treinar-se. As formas de consciência, os sentimentos, que devem acompanhar a ação, colocam necessariamente problemas fundamentais ao treino e à competição. José Neto apresenta uma visão global do treino desportivo, com um quadro de competências para o jogo, que integra: força, resistência, atenção, velocidade, autoconfiança, agilidade, formulação de objetivos, capacidade técnica, coesão, capacidade tática, liderança, motivação (cfr. Preparar para ganhar, Prime Books, 2014, p. 123). Na cientificidade do futebol, como terreno fértil de experiências humanas, são muitos os pressupostos extracientíficos. No livro de Juan Carlos Cubeiro e Leonor Gallardo, Mourinho versus Guardiola (Prime Books, 2011) a solicit
ação dos autores, registei o meu pensar, a este respeito: “Para mim, o futebol não é uma atividade física, é uma atividade humana. Por isso, os métodos, no futebol, são os métodos das ciências humanas. E essa é a força principal de José Mourinho. Ele pode não saber muito de fisiologia, nem de bioquímica. Mas sabe muito de ciências humanas. E é por este motivo que ele, no meu entender, está no caminho certo” (p. 121). Talvez seja bom fazer notar que, se o futebol é tão-só uma Atividade Física, a ele se aplica o postulado de Galileu: “A Natureza é um livro escrito em linguagem matemática”. Mas como medir a qualidade de um Cristiano Ronaldo, ou de um Messi, ou de um Neymar? Ou a dos dois jogadores mais inteligentes que os meus olhos viram: Di Stéfano e Zinedine Zidane? Com a ciência de Galileu, o futebol poderia explicar-se e seria previsível. Daí o pensamento unidimensional, simplificador e reducionista dos que pensam o desporto (o futebol) como Atividade Física.

No futebol movimenta-se um ser sapiens/demens e não um ser sapiens/sapiens. A permanente dialética, que futebol é, não permite unicamente nem números, nem certezas. A grande revolução a fazer no futebol é captarmos o que nele é essencial: a qualidade. E instituir-se o treino da qualidade, ao mesmo tempo que se treinam a tática e os procedimentos técnicos. Quando, no treino, o jogador aprender a aprender-se, na sua complexidade, o treino permite um caminho novo aos altos desempenhos. Mas, para tanto, são precisos mais treinadores, novos também, que não estejam conformes com os padrões habituais. Falta no futebol a imagem do intelectual. Que saiba de futebol. E não só! Faltam ao futebol os treinadores capazes de se debruçarem, com o mesmo interesse, sobre o que tem sido habitual no treino e sobre o texto de um pensador atual ou sobre um vislumbre de humanidade eterna. Nos instrumentos verbais que o treinador do futuro manejar, tem de avultar mais cultura, como expressão do mais humano. Como expressão de um futebol diferente… 

Compartilhe

Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on whatsapp
Share on email
Share on pinterest

Deixe o seu comentário

Deixe uma resposta

Mais conteúdo valioso