Coisas que não se misturam

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Neymar é um verdadeiro fenômeno. Seguramente, a despeito de ainda ter apenas 23 anos (23!), o camisa 11 do Barcelona é um dos maiores talentos que o futebol brasileiro produziu nas últimas décadas. Todo esse potencial ficou claro (mais uma vez) no último sábado (06), no triunfo da equipe catalã por 3 a 1 sobre a Juventus, na decisão da edição 2014/2015 da Liga dos Campeões da Uefa. O brasileiro participou do lance do primeiro gol, anotou o terceiro e se colocou entre os artilheiros do principal torneio de clubes do planeta. Dois dias depois, porém, nada disso repercute mais do que uma faixa usada pelo atacante durante a comemoração.

Ainda no campo do estádio olímpico de Berlim, Neymar amarrou na testa uma faixa com a inscrição “100% Jesus”. O adereço religioso faz parte da trajetória do atacante – ele já havia usado em outras conquistas e até em jogos quando estava nas categorias de base. No entanto, o uso suscita uma importante discussão sobre limites e imagem do ídolo.

Antes, porém, cabem aqui alguns preâmbulos. O primeiro e mais premente: qualquer um jogador ou não, deve ser livre para ter a fé que quiser e manifestá-la como julgar mais pertinente. Não tenho qualquer pretensão de discutir o que é certo ou errado sob esse ponto de vista.

Outro aspecto é a legitimidade. Neymar repercute e forma tendência, e um dos grandes motivos para isso é que ele consegue vender naturalidade. Ele é um moleque que se comporta como moleque, que toma decisões (em campo e fora) com as quais o público consegue se identificar. O uso da faixa seria desastroso se o atacante tivesse usado um momento de glória para fazer publicidade ou vender qualquer produto, mas soa natural quando ele aproveita para reconhecer a relevância de algo como a fé no cotidiano. Neymar não vive disso e não se comporta de maneira oportunista quando o assunto é religião.

Fé é um assunto extremamente pessoal, mas tem repercussões que vão muito além disso. Não são poucas as guerras e as mortes causadas por disputas religiosas, e qualquer coisa que flerte com esse assunto costuma ser extremamente delicada. No domingo (07), a transexual Viviany Beleboni, 26, chocou ao fazer manifestação contra a homofobia na Parada do Orgulho LGBT, em São Paulo – ela vestiu roupas que remetiam a Jesus Cristo, pintou o corpo com tinta que emulava sangue e se amarrou a uma cruz de madeira.

Fotos de Beleboni circularam em redes sociais, e a transexual foi muito criticada por algo que algumas pessoas identificaram como “desrespeito religioso”. A atriz chegou a ser ameaçada. “Nunca tive intenção de atacar a Igreja”, disse ela ao site “G1”.

Neymar não ofendeu ninguém ao usar a faixa com a estampa “100% Jesus”. Contudo, é fundamental considerar que a decisão da Liga dos Campeões da Uefa foi exibida em 200 países, com mais de 180 mil espectadores em todo o mundo. O adereço escolhido pelo brasileiro impõe limites ao personagem que ele representa.

Como atleta e figura de mídia, Neymar é um alguém seguido, avaliado e copiado em todo o planeta. O brasileiro não fala apenas com fãs de seu país ou de sua religião, e o uso da faixa para comemorar o título limita demais o público que se identifica com ele.

O colunista Marcelo Rubens Paiva, de “O Estado de S. Paulo”, lembrou bem: o mundo tem mais de 1 bilhão de hinduístas, e 32% dos chineses são agnósticos. A faixa distancia Neymar de todo esse público.

Neymar tinha direito de mostrar fé e de usar o que quisesse para comemorar um título, mas a atitude dele levou a público um aspecto que deve ser privado para um formador de opinião. A não ser que o interesse dele fosse justamente uma segmentação de alcance.

É por isso, por exemplo, que o inglês David Beckham decidiu, em dado momento da carreira, vetar associação de sua imagem a produtos como refrigerantes. Foi uma segmentação planejada – ele não queria falar com o público que consumia esse tipo de produto porque achava que a imagem de um atleta não devia estar vinculada a algo que não seja totalmente saudável.

Nenhum outro jogador do Barcelona fez algo parecido com a faixa escolhida por Neymar. Não houve demonstrações políticas ou religiosas no restante do elenco. Nem um “100% Jardim Irene”, estampa feita pelo lateral direito Cafu em sua camisa antes de erguer a taça da Copa do Mundo de 2002.

Numa seara bem menos polêmica, Cafu também limitou o alcance daquela mensagem. A decisão da Copa do Mundo foi vista por bilhões de pessoas, e o lateral demonstrou entendimento sobre isso – antes de levantar a taça, subiu em um pedestal e se colocou num patamar superior ao dos dirigentes que entregaram o troféu. Mas as pessoas que não conhecem os bairros de São Paulo não entenderam a referência que ele colocou no uniforme.

A mensagem de Neymar não foi cifrada – mesmo as pessoas que não acreditam em Jesus entendem a referência. Do ponto de vista de comunicação, a questão ali é outra: Neymar é um produto, e rótulos que pespegam em produtos limitam o alcance.

Note que isso é totalmente diferente de Neymar adotar posicionamentos claros – mesmo se forem sobre religião. As coisas em que ele acredita e os pontos que ele defende contribuem para o personagem Neymar, mas a questão é como isso é feito. Ele não precisa omitir a fé ou as questões religiosas, mas talvez limitar esse tipo de manifestação a alguns fóruns adequados.

A limitação de espectro também cria uma limitação de abrangência. Neymar passa a ser um personagem menos viável, por exemplo, para marcas que tiverem intenção de falar com um público menos religioso.

“Ah, mas ele nem pensou nisso no momento da conquista de um título”, vão dizer alguns. É, pode não ter pensado. Mas devia.

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