Os donos da bola

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Como em outras searas, a inclusão de novos termos no vocabulário do futebol é consequência direta da popularização. O número de pessoas aptas a conversar sobre as diferenças entre 4-4-2 e 4-2-3-1 é diretamente proporcional ao contingente de interessados pelos princípios táticos do jogo, por exemplo. O mesmo vale para outras camadas: é possível entender o que acontece em campo sem teorizar, mas o domínio de fundamentos técnicos, físicos e emocionais, em contrapartida, demonstra apreço por uma narrativa que vá além do conteúdo raso. Todo esse contexto é fundamental para debater uma das questões mais recorrentes no futebol brasileiro em 2017: a posse de bola.

O assunto aparece em qualquer discussão sobre o Corinthians, líder do Campeonato Brasileiro. O time comandado por Fabio Carille somou 40 pontos em 16 rodadas (12 vitórias e quatro empates) e abriu confortável vantagem no topo da tabela. O início já igualou a maior arrancada invicta no certame nacional disputado por pontos corridos – o Flamengo havia ficado 16 partidas sem perder em 2011 –, e o aproveitamento dos paulistas supera o de gigantes europeus – na temporada passada, por exemplo, Bayern de Munique, Juventus e Real Madrid não haviam atingido essa pontuação após 16 compromissos. Uma das bases do bom desempenho do time alvinegro, que perdeu apenas duas vezes no ano – a última em 19 de março – é justamente a capacidade de se defender bem nos dias em que o rival controla mais a bola.

Foi assim no último domingo (23), por exemplo. Jogando no Maracanã, o Fluminense foi mais propositivo e teve domínio da bola na maioria da partida. Ainda assim, o repertório da equipe carioca ficou limitado a chutes de fora e cruzamentos – com exceção dos minutos finais, quando os mandantes conseguiram concentrar a partida em seu campo de ataque e tiveram oportunidades de frente para o goleiro Cássio.

No entanto, não é que o Corinthians tenha aberto mão de ficar com a bola. Quando teve chance, o time alvinegro trocou passes e mostrou muita competência na movimentação e nas triangulações. “Se deixássemos, eles tocariam a bola por 90 minutos”, admitiu Abel Braga, técnico do Fluminense, em entrevista coletiva.

O cenário remete ao que havia acontecido em outros jogos “grandes” do Corinthians no ano. O clássico contra o Palmeiras no mesmo Campeonato Brasileiro, por exemplo: o time alviverde, que jogava em casa, teve mais controle da bola, mas cruzou quase 50 vezes e não construiu nenhuma chance concreta de furar a melhor defesa do certame – a equipe alvinegra foi vazada apenas sete vezes. Em contrapartida, os comandados de Fabio Carille, que finalizaram apenas três vezes, construíram uma vitória por 2 a 0.

O desempenho nesses jogos transformou o Corinthians em exemplo de futebol reativo. Há outros casos, inclusive no sentido oposto. O São Paulo de Rogério Ceni teve rendimento claudicante nos primeiros meses do ano, a despeito de ter registrado altos índices de posse de bola e finalizações. Construiu, atacou, mas sofreu. O Atlético-MG de Roger Machado, outro treinador que já foi demitido em função de resultados, também virou case num futebol em que defender passou a ser a melhor arma.

Todas essas análises, contudo, ignoram fatores que vão além da casca. O Corinthians de Carille, por exemplo: não é um time reativo, apenas. É uma equipe que sabe intercalar momentos de pressão e marcação recuada, que consegue se defender sem gerar sofrimento e que não se desfaz da bola apenas por uma determinação para marcar.

Como costuma dizer o colunista Tostão, do jornal “Folha de S.Paulo”, o Corinthians é um bom exemplo de equilíbrio: sabe alternar a intensidade da marcação e escolher os locais mais adequados para tomar a bola. Sabe usar os chutões quando necessário, mas não deixa de procurar triangulações, tabelas e movimentações sem a bola. “O que mais chama atenção é que nenhum jogador deles toca e fica torcendo para o lance ter sequência. Todo mundo está sempre buscando uma linha de passe ou tentando ser opção para receber de volta”, completou Abel Braga.

Não é errado dizer que o Corinthians é reativo, mas essa é apenas uma parte da história.

O mesmo vale para exemplos como Atlético-MG e São Paulo. Os projetos malfadados de Roger Machado e Rogério Ceni tiveram posse de bola estéril, sim, mas reduzir o fracasso a isso seria ignorar erros muito maiores em aspectos como construção de elenco e conceitos de jogo.

O colunista Carlos Eduardo Mansur, do jornal “O Globo”, ponderou que a renúncia à bola tem sido tendência no futebol brasileiro de 2017. Que destruir é mais fácil do que construir e que o conceito reativo é um reflexo da falta de ideias consistentes. Se treinadores e elencos são tão suscetíveis e sofrem com qualquer sequência de resultados ruins, é mais fácil se proteger.

Entretanto, reagir nem sempre é sinônimo de repertório pobre. O Barcelona de Pep Guardiola era reativo em grande parte dos jogos, mas isso acontecia porque o time sabia pressionar seus rivais e muitas vezes tomava a bola nos setores do campo em que o caminho para o gol era mais curto, diante de uma defesa menos estruturada.

A dificuldade de construir no futebol brasileiro não é necessariamente o contrário de ser reativo. É preciso discutir os problemas de criatividade das equipes nacionais, sim, mas em um contexto muito mais amplo do que “tal time só se defende” ou “tal time ataca muito, mas não acerta as finalizações”.

Tomemos como exemplo o Atlético-MG: um elenco rico, com opções que propiciam diferentes formas de jogar. Roger Machado tinha várias formas de construir a equipe, mas nenhuma seria capaz de solucionar problemas básicos: os volantes podem até se movimentar, por exemplo, mas nenhum tem perfil de construção; Robinho e Cazares, dois dos mais criativos homens do setor ofensivo, gostam de atuar na mesma faixa do campo quando estão com a bola e são igualmente inócuos quando estão sem ela. E esses são apenas dois aspectos de um elenco que precisa ser dissecado e analisado com profundidade para entender a campanha de 2017.

Pensar no futebol que queremos ver também tem a ver com quem domina a bola, é claro. Mas o maniqueísmo de “quem tem mais posse é melhor e quem tem menos posse é pior” só serve para quem enxerga o jogo sem querer ir além da camada superficial.

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