Sobre a beleza de um jogar

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‘Diego Simeone: uma outra estética do futebol?’ (Foto: Trivela)

 
Muitos são os debates, não exatamente frutíferos, que alimentamos historicamente no futebol brasileiro. Um deles me parece particularmente interessante, aquele que estabelece uma distinção entre jogar bem e jogar bonito. Neste raciocínio, jogar bem e bonito não podem ser sinônimos, pois suas finalidades seriam diferentes: enquanto o jogar bem teria um viés utilitário, resultadista, o jogar bonito seria uma espécie de adorno, um enfeite valorizado por determinados treinadores e treinadoras, que de pouco serviria se não trouxesse consigo o resultado.
Muito bem, comecemos pelo seguinte: a beleza de um jogar é inata? Não, não é. Se o jogar bonito fosse uma qualidade natural do jogo, todas as equipes jogariam de forma absolutamente agradável aos olhos. Mas não é isso que acontece, o que nos leva a crer que a beleza de um jogar, para além de um milagre, é um projeto. Ser um projeto não significa que ela seja um fim em si mesma, pois se fosse, estaria distante da lógica do jogo. A beleza deve estar a serviço de algo maior, deve ser um meio em busca de um determinado fim.
Sendo um projeto, a beleza de um jogar começa no campo das ideias. Treinadores e treinadoras precisam cultivar a própria mente com absoluta diligência, com as mais diversas sementes, especialmente aquelas que estão para além do futebol, pois saber de futebol não basta. A beleza do jogar também está na capacidade de colher o que há de belo em outros espaços e plantá-lo novamente no futebol, adaptá-lo, fazê-lo florescer em um espaço que, via de regra, acostumou-se a ser estéril, uma das razões por que também existe um quê de dissabor na relação do nosso povo com o nosso futebol. Poderíamos nos estender aqui sobre a paixão de Pep Guardiola pelos filmes, de Quique Setíen pelo xadrez, de Ernesto Valverde pela fotografia e diversos outros treinadores, mas não é preciso. Basta que cada um de nós, se quisermos que o jogar das nossas equipes seja belo, façamos um esforço racional para sairmos da ilha, para ir além.
Sabendo que a beleza de um jogar não é inata, é preciso ação. É preciso trabalho e trabalho de qualidade. Em linhas gerais, este trabalho é sinônimo de treino. Treinadores e treinadoras, se quiserem cultivar um jogo bonito, devem ser artistas do treino, devem pintar um quadro único, harmônico (porque é belo), mas não exatamente decifrável: é preciso que nossas sessões de treino gerem incômodo, não um incômodo que repele, mas um incômodo que instiga, que desperte a curiosidade dos atletas para continuar o quadro parcialmente apresentado por treinadoras e treinadores. Ou seja, os treinamentos não morrem em si, não têm respostas certas, mas são quadros pintados em conjunto por treinadores e atletas, visando um bem comum. Assim também se constrói a beleza de um jogar.
Pelo quadro que pintamos até agora, repare que, cada vez mais, o belo e o bom não parecem distantes, mas cada vez mais próximos, eventualmente inseparáveis. Daqui podemos avançar em um outro quesito: a beleza do jogar não reside em um modelo de jogo, apenas. Muito embora, especialmente em um passado recente, tenhamos criado uma espécie de fetiche com relação aos modelos que valorizam a posse, me parece evidente que a beleza do jogar está, em potencial, em todos os modelos e estruturas possíveis. Está nas equipes que jogam a partir da bola, mas também está nas equipes que jogam sem ela. Neste sentido, há algum tempo defendo que Diego Simeone deu uma contribuição admirável à estética do futebol contemporâneo, pois no Atlético de Madrid não apenas o esforço é inegociável (se a beleza de um jogar exige esforço, ela não pode ser inata), como existe uma harmonia visível no movimento defensivo, nos espaços entre os jogadores da mesma linha e, ao mesmo tempo, no espaço entrelinhas, o que significa um controle do tempo e do espaço do jogo realmente admiráveis e que, exatamente por isso, ainda permite inúmeras possibilidades em transição – aqui, repare como Antoine Griezmann é um jogador fundamental, sempre próximo das linhas de defesa, permitindo que o jogo flua em transição ofensiva.
Repare aqui como a beleza de um jogar não está exatamente na forma, mas está na matéria. O que isso significa? Significa que a beleza do jogo (assim como a beleza da vida vivida) não está nas aparências, somente. É preciso que a essência seja construída, uma espécie de beleza intrínseca, que não apenas parece ser, mas que é. Para isso, além do treino de qualidade, é preciso que tenhamos absoluto cuidado com as nossas inspirações. Não é possível um jogar bonito se ficarmos apenas no campo da cópia, pois não se pode copiar algo na sua inteireza, o que faria com que estivéssemos sempre em desvantagem com relação, neste caso, à equipe que nos inspira. Para a beleza de um jogar, ao menos aos meus olhos, é preciso ser quem se é, é preciso ser original: escolher um bom modelo, adequado ao contexto, negociá-lo com jogadores, relembrá-los do modelo tanto quanto possível e, uma vez mais, ser um artista do treino, extraindo beleza e eficiência a cada sessão.
Neste sentido, o jogo bonito guarda consigo uma função pedagógica fundamental. Afinal, o jogo bonito educa o treinador, cujo espírito e sentidos precisam estar afiados para operacionalizar o melhor jogar possível dentro da lógica do jogo. O jogo bonito também educa os atletas, pois a beleza de um jogar, para que seja boa, precisa estar a serviço do grupo, não apenas dos indivíduos. Assim, jogar bonito seria razoavelmente republicano, por assim dizer, pois os atletas agem em função da res publica, da coisa pública, para além das suas vontades individuais. Em quaisquer categorias, a beleza do jogar também educa pais e torcedores, pois talvez o futebol esteja mais próximo da arte do que da ciência, e o jogar bonito tenha consigo uma dimensão de possibilidade, de materialização de um ideal, de superação de quem joga e de quem assiste.
Razão pela qual a beleza de um jogar talvez deva ser mais procurada do que o resultado em si. Pois o resultado, como observamos anteriormente, escapa do nosso controle, como a água sempre escapa pelos dedos de quem tenta segurá-la.
A beleza de um jogar, em linhas gerais, passa por aquilo que podemos controlar.
Sendo assim, ela é possível.

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