Sobre os defensores que (ousam) jogar bem futebol

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Segundo consta (e não há motivos para descrença), a língua portuguesa tem cerca de 400.000 palavras. Neste número, imagino, estão contempladas as gírias, os neologismos, as palavras arcaicas, enfim… quaisquer unidades lexicais possíveis. Aqui entre nós, é um número bastante razoável. Que me faz imaginar duas coisas: primeiro, ainda que nenhum de nós domine o idioma nativo na sua inteireza – muito pelo contrário – todos nós nos consideramos fluentes. Ao mesmo tempo, repare que as palavras, isoladas, são pequenas: os significados maiores nascem da relação e, poeticamente, do espaço entre as palavras. Daquilo que se vê, mas também daquilo que não é visto.
Nas últimas semanas, vários colegas do meio do futebol mostraram-se embasbacados por um motivo quase que banal, expresso em duas situações diferentes. A discussão é sobre a necessidade de zagueiros e goleiros (defensores em geral) sentirem-se confortáveis e jogarem com a bola nos pés. As situações foram a Copa São Paulo de Futebol Júnior – onde houve quem criticasse ferozmente os zagueiros e goleiros que se esforçavam para jogar bem futebol – e, ao mesmo tempo, os expressos desejos de Jorge Sampaoli, treinador do Santos, cuja predileção por goleiros que saibam jogar com os pés é notória.
Vejamos.

***

Talvez o passe esteja para o futebol como as palavras estão para um idioma. É claro que não existem 400.000 tipos de passes (Marcelo Bielsa, certa vez, disse haver 34), e não é esse o ponto. O ponto é que, sem uma fluência razoável no passe, não se pode falar bem o idioma do futebol. Isso não significa, repare bem, que o passe deva ser percebido a priori ou praticado de forma isolada – primeiro, porque não mais queremos uma tecnocracia e depois porque, assim como as palavras, o passe só faz sentido quando imerso no todo. É na arte de passar no momento, na velocidade, no espaço e na intenção adequadas que um jogador de futebol se faz diante do jogo.

Mas repare que coisa interessante: várias das críticas dirigidas aos zagueiros e goleiros que se esforçam para jogar bem futebol estão diretamente relacionadas com a posição por eles ocupada no campo. Por esse raciocínio, zagueiros e goleiros deveriam ter preocupações anteriores ao fato de, por exemplo, saber jogar com a bola nos pés. Das várias objeções que me ocorrem, começo com a mais simples: antes de zagueiros ou goleiros, os leitores e leitoras haverão de convir comigo que estamos falando de jogadores de futebol. Não se é ginecologista antes de ser médico: é preciso sê-lo para então especializar-se. Da mesma forma, não se é zagueiro ou goleiro sem, antes, tornar-se jogador. E se o passe é o alicerce para um léxico adequado, como pensamos acima, então qualquer jogador ou jogadora, independentemente da posição, precisa carregá-lo consigo – e bem. Isso, aliás, atinge em cheio os nossos processos formativos.

Tamanha preocupação com as posições ocupadas pelos jogadores em campo me parece refletir um duplo problema. O primeiro é uma dificuldade, ainda bastante presente, de contemplarmos o jogo como um sistema. As posições, as linhas horizontais/verticais, mesmo os momentos/fases do jogo, todos eles têm uma função importante, mas meramente didática: são bússolas que nos guiam em meio aos sucessivos distúrbios inerentes ao jogo. Mas isso não significa que aquelas referências não dialoguem entre si. Assim como no teatro grego, em que tragédia e comédia se faziam juntas, ataque e defesa são faces interligadas que, em um instante (que nos habituamos a chamar de transição), se alteram, mas não existem separadamente. Zagueiros não são apenas zagueiros, goleiros idem: o jogo não é um amontoado de pedaços que se encaixam entre si quando nos convém, mas está mais próximo de um rizoma, um emaranhado de eventos sucessivos que se conectam para muito além da nossa compreensão. O jogo não se faz de partes isoladas. O jogo é uno e múltiplo.

Mas ainda há o outro problema, talvez mais grave: nele, reside a crença de que as coisas e as pessoas são estáveis ao longo do tempo. Ou seja, nada muda. Isso é particularmente assustador quando falamos da modalidade que talvez melhor demonstre o movimento e a impermanência, infinitos problemas requerendo respostas imediatas e sempre abertas, temporárias. No jogo, nada é: tudo está. Assim, zagueiros e goleiros (estão nessas posições) que supostamente carecem da fluência necessária para resolver um determinado problema (que pode ser participar da organização ofensiva), são portanto os mais disponíveis para mudança – os mais treináveis, diria alguém. Nada é, tudo flui e ao invés de se perceberem como imutáveis, os atletas podem expandir seus limites, descobrir a si mesmos através do modelo, do método, das ideias do treinador – Vanderlei já é um exemplo disso.

Mesmo no futebol profissional, é importante termos claro que o processo formativo do atleta só termina ao fim da carreira. Por isso, aos treinadores e treinadoras, cabe assumir suas responsabilidades neste sentido. O ato de treinar é um ato educativo.

A função dos treinadores é particularmente importante porque embora os alvos explícitos sejam os zagueiros e goleiros, a crítica, na verdade, visa o banco de reservas. Houve quem dissesse, durante a recém-encerrada Copinha, que os treinadores das categorias de base não deixam mais os zagueiros darem chutões, apenas passinhos para o lado. Não pretendo me estender aqui: basta dizer que não se trata disso. O que se quer, ao menos o que percebo, é jogar bem futebol, cada vez melhor. E isso implica desconforto, desencantamento, incômodo – ainda que isso não seja exatamente reflexo do jogo, mas sim do nosso olhar. Repare que contradição interessante: fala-se muito que o jogo apoiado só é possível com jogadores de ‘qualidade’. Mas, para o jogo apoiado, os passes tendem a ser curtos/médios, digamos aqui entre 5 e 15 metros. No jogo direto, por sua vez, é preciso passar longe. Pensemos em um lançamento de quarenta metros, por exemplo. É mais fácil um passe de cinco metros ou um de quarenta? Curiosamente, não vejo a mesma denúncia sobre a ‘qualidade’ quando se joga direto… Não se joga curto por modismo. Se joga curto por eficiência.

Dar aos zagueiros e goleiros a possibilidade de serem fluentes na organização ofensiva não tem apenas uma função de jogo, têm uma função moral: jogar bem futebol é um ato de coragem. Assim como um baixo domínio lexical não nos deixa confortáveis em determinados ambientes, um domínio limitado dos conteúdos de jogo também nos faz menores como pessoas, mais estreitos. Aos treinadores e treinadoras, não nos cabe o conformismo: é preciso ir além. É preciso ultrapassar o jogo através das ideias e, então, através do treino. É preciso criar situações para que nossos defensores (e nossos atletas) encontrem, em si mesmos, as respostas que lhes façam jogar curto, quebrar linhas, circular a bola, criar apoios, jogar bem futebol. Alguns deles, talvez todos, até já saibam fazê-lo. Mas será que eles sabem que sabem?

***

Por fim, assim como dissemos que zagueiros e goleiros, antes de tudo, são jogadores, há uma outra camada a ser descoberta: jogadores e jogadoras, antes disso, são humanos. Só podem se realizar na sua humanidade. Se não têm uma essência, se fazem na existência. Logo, estão obras inacabadas. Querendo se tornar fluentes no idioma da vida.
Querendo jogar bem futebol.
Cada vez mais.

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