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Marcelo Gallardo, do River Plate: um dos treinadores sul-americanos que deslocam os limites do ataque. (Reprodução: These Football Times)

 
Como eu mesmo tenho escrito recentemente, talvez o problema que mais me inquiete no futebol de hoje em dia seja o problema do ataque. Outros problemas, como os ideais inalcançáveis de liderança, as supostas tensões entre teoria/prática, os pseudo experts que se criam por aí (na academia e na imprensa), todos me parecem problemas secundários, seja pela irrelevância, seja pela inferioridade em comparação ao problema do ataque. Talvez o único assunto tão importante quanto o do ataque seja o da humanização. Mas este não será nosso foco hoje.
Neste texto, vamos conversar, na medida do possível, sobre algumas ideias que me ocorrem quando penso no ataque. Mas, assim como para as soluções, também me faltam palavras para expressar claramente minhas dúvidas. Assim, ao longo do texto, vou tateando minhas inquietações e, de alguma forma, espero que elas se relacionem com as suas.
Vejamos.

***

Assim como fizera o colega Nuno Amieiro, no seu livro Defesa à Zona, discutindo o significado do termo marcar, também me sinto obrigado a localizar os leitores e leitoras sobre o que falo quando falo do ataque. Para isso, não precisamos inventar muito. Quando falo do ataque, falo especialmente de situações de gol criadas a partir de lances com bola rolando. Esta tem sido minha grande preocupação: fazer com que minhas equipes cheguem ao gol, com bola rolando, de maneira recorrente.
Bom, neste sentido, qual é a relevância das estruturas? Ou seja, que diferença faz jogar num 4-3-3 ou num 1-7-2? Na minha opinião, nenhuma. Nenhuma porque as estruturas são apenas pontos de partida, são imagens sólidas que desenhamos a priori, mas que se dissolvem dentro do jogo, no ataque, na defesa, nas transições. As estruturas, queiramos nós ou não, irão se adaptar ao jogo, aos problemas do jogo, serão equilíbrios dinâmicos. Ótimo, mas se isso não é central, então o que é? Talvez sejam outras duas coisas: a quantidade e o movimento.
Vamos pensar em quantidade como o número de jogadores com os quais atacamos. Veja bem, isso é central. É possível jogar em 4-2-3-1, por exemplo, e atacar com apenas quatro jogadores: um dos laterais, os três meias e o centroavante. Da mesma forma, é possível jogar em 4-2-3-1, mas atacando com sete jogadores: os dois laterais, um dos volantes e os quatro da frente (quando me refiro ao número de jogadores, imagine os que estão autorizados a ocupar o espaço da linha da bola em diante). Voilà, matamos dois coelhos de uma vez só: a estrutura é secundária, mas o número de jogadores autorizados a atacar (ao mesmo tempo), não.
Da mesma forma, pense comigo: é possível atacar com sete jogadores a partir de estruturas mais fixas. Ou, se você preferir, em função do espaço. Ou seja, cada jogador sabe que tem um espaço a explorar, que têm uma zona e que, via de regra, não deve escapar à própria zona, exceção feita, talvez, ao chamado último terço do campo. Este não é um problema, pelo contrário: há diversos treinadores de ótimo nível que partem desta premissa. Por outro lado, imagine um treinador que também ataca com sete jogadores, mas que dá a eles liberdade para movimentarem-se pelo campo ofensivo como julgarem necessário. Veja bem, isso não é sinônimo de anarquia: afinal, qualquer tomada de decisão demanda responsabilidade, consigo mesmo e com a equipe. Mas, ao mesmo tempo, a liberdade ofensiva permite não apenas uma expressão da própria subjetividade, como também facilita o encontro dos espaços do jogo, dado que eles sempre serão imprevisíveis, contingentes, relacionais, incertos. Quem não estiver livre, disponível e aberto para explorá-los, terá maiores problemas. Quem estiver livre, quem puder criar a própria liberdade, talvez tenha mais possibilidades. Do caos, surge uma nova ordem.
Neste sentido, repare que interessante o primeiro gol do São Paulo, no último sábado. Éverton sabe que não precisa prender-se ao espaço definido no setor esquerdo do ataque, ele está livre! Por isso, atacou outro espaço, entre os zagueiros. Da mesma forma, repare que interessantes os movimentos ofensivos de Victor Ferraz, do Santos, e Gilberto, do Fluminense – apenas para ficar nos dois. Eles podem começar como laterais/alas, mas também podem virar volantes, meias, às vezes centroavantes!– quem decide é o jogo.
Para quem se defende, isso pode ser terrível.

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No comecinho da construção, existe algo que me inquieta. Vários colegas (e eu mesmo) gostam da ideia de começar o ataque com uma linha de três. Mas de que linha de três falamos? Via de regra, há duas possibilidades: uma linha com dois zagueiros e um dos volantes (saída lavolpiana, se você preferir), ou então uma linha que parte de três zagueiros de ofício. A única semelhança entre elas está no número, na forma. No conteúdo, são bem diferentes.
Veja bem, existe uma consequência prática no fato de sair com uma linha de três zagueiros de ofício, especialmente quando essa é uma solução temporária, circunstancial, não exatamente treinada pela equipe. Para o zagueiro central, aquele que está de costas para o campo quando a bola está com o goleiro, esta pode ser uma situação bastante desconfortável. Porque não exatamente ele está habituado aquele lugar, não sabe se sai do corredor central (abrindo as linhas de passe atrás dele) ou se fica, ou às vezes não se lembra, no calor do jogo, de perfilar o corpo mais lateralmente, para perceber tanto o goleiro quanto o resto do campo. Neste caso, uma das coisas que agradam é fazer uma linha assimétrica, ou seja: quando a bola está com o goleiro, este zagueiro se desloca para um dos lados, (deixando o espaço central livre), fazendo o zagueiro daquele lado abrir mais alguns metrinhos. O objetivo é simples: evitar que zagueiros recebam de costas em um setor perigoso, especialmente se a ideia da equipe for construir por baixo. Aliás, em um futuro próximo, imagino que este espaço central seja cada vez mais ocupado pelos goleiros – como já fez o Hamburgo recentemente.
Repare que é uma situação diferente da de um volante (como um Busquets, por exemplo), que foi formado para aquela função, para perfilar-se de lado, para olhar por sobre os ombros sete, oito, dez vezes a cada lance, que sente quando deve aproximar-se do goleiro, quando deve se afastar. Esta fluidez tem uma repercussão importante na construção ofensiva, pois ela também dirá se haverá ou não maiores chances de superioridade mais adiante no campo. A equipe que ataca a partir de três zagueiros de ofício provavelmente terá mais ou menos jogadores no ataque do que uma equipe que parte com dois zagueiros de ofício e um volante? Provavelmente, menos. Pois aquela ainda terá um jogador logo à frente da linha de zaga (3 + 1), enquanto que, no outro caso, este jogador já existe (2 + 1, o que faz com que aquela equipe ataque, no máximo, com seis jogadores, enquanto esta pode atacar com até sete).
Isso faz com que uma equipe ataque melhor do que a outra? Claro que não. Mas é um detalhe a se pensar. E nos detalhes se faz o ofício de treinadores e treinadoras.

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Por fim, vejo no ataque um problema existencial. Pense comigo: o jogador que joga é a pessoa que se é. Da mesma forma, o treinador que treina também é a pessoa que se é. Não é possível, amigas e amigos, dissociar a existência do ofício. Mas, quando falamos de futebol, será que levamos isso a sério?
Acho que não. Levar isso a sério significa, basicamente, sair das palavras para os atos. Significa estar munido de uma pedagogia maior, que enxerga a pessoa que está além do atleta, significa olhá-lo por inteiro, todos os dias, a cada instante. Isso é muito mais difícil do que parece. E o que isso tem a ver com o problema do ataque? Bom, basta lembrar que atacar bem é um ato de coragem. Mas repare que, sutilmente, formamos gerações cada vez mais confortáveis, imediatistas, simplificadoras, oscilantes, gerações moralmente frágeis e incapazes de reagir às próprias fragilidades. Como esperar, portanto, que aqueles com limites para resolver os problemas da vida vivida possam resolver, regularmente, os problemas do jogo? Este é o produto do nosso tempo, e é por isso que nós, treinadores e treinadoras, precisamos não apenas nos perceber como educadores, mas nos cercar do progresso (não do progresso da técnica, mas do progresso moral), necessário ao nosso ofício.
Neste sentido, repare bem, é fundamental cultivarmos um caminho duplo, que não apenas perceba o potencial educativo (literalmente pedagógico) do jogo, mas que também perceba o potencial educativo que está além do jogo. Nossas filosofias de vida precisam estar encarnadas – é por elas que educamos! Isso não se faz apenas pelos livros, isso se faz pela experiência, por aquilo que nos passa, que nos toca. Uma equipe ofensiva reflete gente ofensiva, uma equipe corajosa reflete gente corajosa (nos atos), uma equipe fluida reflete gente fluida e, especialmente, uma equipe humana reflete gente de carne e de osso, gente que é corpo, carne, sangue e espírito, e gente que não apenas pensa (porque a razão pura não é suficiente), mas que também sente o jogo, afina os sentidos, como um violonista afina pacientemente o instrumento em busca da melodia perfeita. Ultrapassar os limites do ataque significa ultrapassar os limites do humano, significa uma outra humanidade, de modo que não nos basta buscar (captar) os melhores jogadores, é preciso formar melhores jogadores, melhores pessoas, é preciso formar a si mesmo.
Mas como fazê-lo?
Bom, isso é outra conversa.
 

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