Um dos mais repetidos debates entre os amigos e amigas do futebol está certamente associado ao conceito de inteligência. Se estou bem lembrado, esta mesma Universidade do Futebol já trouxe (e traz) contribuições importantes neste sentido. Tratar da inteligência no futebol é tratar de um terreno bastante fértil, uma vez que são possíveis (e desejáveis) contribuições das mais diversas áreas do conhecimento.
Neste texto, gostaria de trazer uma contribuição específica, que me ocorreu outro dia, em uma leitura que citarei abaixo. A partir dela, espero construirmos um olhar que nos permita não apenas re-pensar o que entendemos como inteligência no futebol, como também nos permita re-pensar as formas de praticar isto que entendemos por inteligência no futebol.
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Leio em Severino Antonio, um autor da Educação, no livro ‘Uma nova escuta poética da educação e do conhecimento’, uma passagem bem breve sobre a inteligência, que gostaria de citar. Depois disso, vamos trabalhar um pouco essa passagem. Diz ele, falando da importância de repensarmos as nossas ideias sobre a razão, que é preciso:
“(…) Uma razão que não recuse o diálogo com os símbolos complexos, mas que – ao contrário – redescubra a definição etimológica de inteligência: intus legere, ler dentre, ler dentro, ler nas entrelinhas. Uma razão criativa, capaz de reconhecer os mistérios do mundo, e de dialogar com eles.” (p.23)
Da minha parte, na maioria das vezes em que quero pensar sobre uma palavra, eu não vou exatamente aos dicionários gerais, mas sim aos dicionários etimológicos – aqueles que tratam da origem das palavras. Repare o caminho que a etimologia nos abre quando pensamos na palavra inteligência: o inteligente, em primeiro lugar, é aquele capaz de ler dentro. Daí, é o que consegue ler dentre as possibilidades de dentro e, mais tarde, ainda consegue ler nas entrelinhas daquilo que está dentro. Guarde bem essa ideia. Vamos partir dela para pensarmos o jogador inteligente.
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Fica mais ou menos claro que o jogador inteligente tem uma leitura diferente dos outros jogadores. Os outros, em média, conseguem ler apenas aquilo que pode ser visto. Meus colegas cientistas diriam que são jogadores positivistas (positivo = qualidade do que pode ser visto). Só que os jogadores positivistas não são, necessariamente, jogadores inteligentes. O jogador inteligente é aquele que não está preocupado apenas com o que pode ser visto, apenas com os sistemas, apenas com a bola, com os adversários, apenas com o alvo, ele não está preocupado com nada disso em particular: ele está interessado (às vezes sem saber) no que está através e além daquilo que se vê, além do que os outros estão vendo. Exatamente por isso, ele é diferente. Sabendo ler o jogo nas entrelinhas (e não apenas nas linhas), o jogador inteligente vê o que não se passa nos olhos dos outros. É o que faz dele inteligente.
Dizendo isso, lembro-me daquela frase do Cruyff, que disse que algo próximo de ‘o futebol é um jogo que se joga com a cabeça e em que se usam os pés’. Ou seja, os pés são como acessórios, acessórios que trabalham em seguida do trabalho da cabeça. Mas, sendo os pés acessórios, então você haverá de convir comigo que jogar bem futebol não se centraliza na técnica. O jogador inteligente não é inteligente porque é técnico (se fosse assim, era preferível ter os pés na cabeça), mas é técnico, dentre outros motivos, justamente porque é inteligente. Um desses motivos é tático: se não estiver nos melhores espaços, com tempo suficiente para ação (capaz de inventar tempo, se preciso), em condições de relacionar-se bem com a bola e os companheiros, suficientemente distante dos adversários, podendo prosseguir ao alvo (gol), mesmo o mais técnico dos jogadores terá dificuldades para se criar. Por isso, não basta ser técnico, é preciso ser tático. É claro que isso também vale para as outras dimensões do jogo (que não se separam, como já sabemos), mas enfatizo o tático-técnico, porque o jogador inteligente é aquele que, exatamente por ler nas entrelinhas, sabe onde estão os espaços do espaço e, logo depois, sabe o que fazer com os espaços que se tem.
Se entendi bem, então o jogador inteligente lê nas entrelinhas – sendo as entrelinhas (também) tático-técnicas. Isto dito, pense uma outra coisa comigo: o jogador inteligente se faz jogando. Parece óbvio, mas não é. Por exemplo, caso eu queira formar um jogador inteligente, será inteligente colocá-lo de frente para outro jogador potencialmente inteligente, e pedir que eles troquem X passes entre si? Pé direito, pé esquerdo, chapa, parte externa… Bom, isso até pode torná-los inteligentes no ato de passar-a-bola-curto-fora-do-jogo, mas não necessariamente fará deles jogadores mais inteligentes. Eles serão mais inteligentes se souberem passar a bola curto (como no exercício), acertadamente, em contextos menos e mais complexos, ao longo do tempo, dentro do jogo. O fazedor de embaixadinhas, por exemplo, é inteligente na arte de fazer embaixadinhas, mas não é necessariamente um jogador inteligente. Para formar jogadores inteligentes, é preciso que os jogadores joguem! Não pode ser proibido jogar, pois o jogador inteligente se faz é pelo jogo. Assim, quanto mais atentarmos para as metodologias baseadas no jogo, mais próximos estaremos, a meu ver, de formar jogadores mais inteligentes.
E de onde vêm os jogadores inteligentes? Alguém dirá que eles vêm de fábrica, escolhidos por uma voz celestial, talento nato. Veja bem, eu não descarto as coisas da nascença e inclusive tratei disso neste texto. Mas, ao mesmo tempo, sabemos que os talentos se fazem, de fato, na relação com a vida. Nem só no sujeito, nem só no objeto: na relação. Por isso, a Pedagogia do Esporte é tão importante: porque o sujeito inteligente, ainda que saiba ler nas entrelinhas, não nasceu alfabetizado. Ele aprendeu a ler, depois aprendeu a ler além das palavras, além das frases, além da leitura técnica, para então ler nas entrelinhas. Como disse certa vez o George Steiner, há quem seja, ao mesmo tempo, capaz de ler tecnicamente a letra impressa, mas analfabeto no único sentido que importa. O jogador inteligente, da mesma forma, é alfabetizado no sentido mais importante, é resultado de horas e mais horas de jogo, de boa pedagogia, de cuidado humano, de cuidado com os afetos, de mais jogo. O jogador inteligente não nasce pronto, não está pronto, não estará pronto, porque se faz na relação com o mundo, na relação consigo mesmo, é mais vírgula do que ponto final.
Ainda que esses pontos (todos eles!) não sejam tão simples assim…