Sobre as lentes de contato (humano)

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Tá, ‘seo’ Feola, só falta combinar com os russos” – Garrincha

Na coluna passada, falamos da interdisciplinaridade como uma das certezas da vida. Pois bem, essa afirmação – que para alguns soa presunçosa – não nasceu de uma árvore de devaneios interiores. Ela tem fonte e viés epistêmico e está sustentada por um modo de enxergar a vida vivida e as relações humanas, ao admitir que o mundo gira, o tempo passa – e o tempo também voa “para a poupança Bamerindus continuar numa boa”.

O trocadilho de gosto duvidoso do parágrafo acima pode nem fazer muito sentido para um montão de gente, então segue a explicação. A poupança Bamerindus não continua numa boa, porque esse banco, de origem paranaense, deixou de existir ainda no século passado. Mudou, foi comprado, virou outro. E é exatamente disso que trataremos no presente texto: mudança, metamorfose, não-linearidade, interação, inconstância, emergência.

O ato de ensinar/treinar é, tal qual o jogo, imprevisível – um dos motivos pelos quais entendemos porque há tanto sentido nas metodologias pautadas em jogos no futebol, por exemplo. A prática pedagógica tende ao caos, à desordem, justamente porque não é possível controlar todos e todas, tudo que a cerceia, seja lá qual for o contexto. Desde o drible improvisado do atacante ao erro bizarro do goleiro, do chute pouco provável no último minuto, passando pela expulsão relâmpago até a dividida no treinamento que provoca a lesão ou a contaminação coletiva de um vírus contagioso. Todas essas situações que podem emergir, meio que sem mais, nem menos e provocar mudanças bruscas na condução do(a) professor(a)/treinador(a) em meio aos jogos ou treinos.

Por essas e algumas outras, desconfio que o professor(a)/treinador(a) que afirma, com contundência, que possui 100% de controle em suas ações e intervenções é ou demasiadamente ingênuo(a) ou desconhece a própria natureza de sua prática enquanto pedagogo(a) do esporte e do futebol.

Há também uma terceira possibilidade – que não necessariamente exclui as anteriores: a de que esse ou essa profissional esteja simplesmente sustentado(a) por um outro paradigma.

Sejamos, pois, didáticos: o paradigma representaria, tomando emprestado algumas noções conceituais do “Pensamento Sistêmico“, da Maria José Vasconcellos, das “Estruturas das Revoluções Científicas“, de Thomas Kuhn e “d’O Método“ de Edgar Morin, as lentes de contato que, com o perdão da redundância, contatam ser humano e mundo. Ao ser validado e interpretado por uma comunidade científica, o paradigma passa, tal qual um farol, a iluminar sociedades, por meio de leis, regras, crenças e concepções de vida supostamente coerentes.

Então, quando acreditamos, enquanto professor(a)s/treinador(a)s de futebol, que somos capazes de controlar tudo, tudinho, o que nos passa nos ambientes de ensino, vivência, aprendizagem e rendimento, é bem possível que estejamos guiados por um modo de pensar associado ao paradigma analítico-sintético, chamado também de tradicional ou dominante, dada sua influência sobre as sociedades que habitam o planeta nos últimos séculos.

Esse paradigma, concebido junto ao Racionalismo cartesiano e aos métodos empiristas nos Séculos XVI e XVII, propõe a explicação dos fenômenos por princípios como o da simplicidade: fragmentamos, nos treinamentos, o todo (o jogo) em partes (ações técnicas) que nem sempre possuem relações entre si, baseadas na relação causa-efeito. Suponhamos: ao treinarmos finalização de modo analítico temos crença que, a despeito do isolamento dessa ação com as situações problemáticas do jogo, o/a jogador/a terá essa ‘habilidade’ potencializada durante as partidas. É o que costuma nortear também os famosos ‘onze contra zero’ e a maioria das jogadas ensaiadas – e pouco importa se elas não foram combinada com os russos.

Outro princípio característico do paradigma analítico-sintético é o da objetividade, que no futebol pode ser caracterizado pela convicção (mesmo sem provas) de que a análise d’um jogo é passível de descrição pura, simples e objetiva, e não de interpretações subjetivas, até mesmo afetivas. O que manda é a estabilidade, materializada, justamente, pelo controle e previsibilidade de toda e qualquer situação que ronda o/a professor/a e treinador/a e seus comandados/as, geralmente pela manipulação de comportamentos.

E a interdisciplinaridade, fica onde? O que significa o papel dos departamentos de fisiologia na prevenção de lesões ou da análise de desempenho, ao monitorar as características – fortes e fracas – do adversário e da própria equipe senão a tentativa de obter o máximo controle sobre quem joga?

Existe um filósofo contemporâneo que cunhou a expressão ‘chegar é uma coisa, passar é outra’. Tentar, nesse caso, não implica em conseguir controlar o jogo, dentre outras coisas porque ele também é feito de carne e osso. Parece-nos possível – e legítimo – minimizar riscos, prever e corrigir situações, sem que haja presunção, no entanto, em domá-las por completo. Trata-se de tornar o imprevisível um pouco menos imprevisível.

Ao afirmarmos que o jogo é incontrolável e, por consequência, ações de jogadores/as e as intervenções pedagógicas de quem ensina/treina, estamos fardados por um outro tipo de ‘lente’: a do paradigma complexo/sistêmico, que contempla o mundo de forma não-linear, pouco causal, como lugar inerente à mudanças e interações constantes e parece dar conta de explicar um bocado de ressignificações nas próprias relações humanas e no jogo de futebol ao assumi-los como indomáveis em essência.

A ‘troca de lentes’, porém, não é simples e costuma ser incômoda. O paradigma analítico-sintético influenciou e continua a persuadir nossa existência e ignorá-lo por completo ou não reconhecer sua benesses, inclusive científicas, beira o imprudente. Romper com ele está para além da simples aplicação, por exemplo, de metodologias ativas, pautadas no jogo, ou em premissas conceituais das chamadas novas tendências da Pedagogia do Esporte, sem entender minuciosamente o contexto a que estamos inseridos. Exige disposição para o auto-conhecimento e empenho para desconstruir e ressignificar parte de nossa identidade, tanto a pessoal, quanto a profissional – diria aquele apresentador de TV – como se ela, aliás, fosse assim, repartida.

Mas isso é papo para outro dia. Afinal, o tempo passa, o tempo voa…

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