Crédito imagem – Rafael Vieira/AGIF/CBF
Tivemos a oportunidade de introduzir em textos anteriores – aqui e aqui – o tema da complexidade no futebol, buscando alguns referenciais para uma reflexão crítica que nos permitisse enxergar o futebol em uma perspectiva distinta daquela adotada pelo senso comum. Nesta visão tradicional, calcada no paradigma cartesiano, linear, mecanicista, existe uma predisposição para que, ao se buscar aprofundar o conhecimento em torno de um determinado objeto ou fenômeno, divide-se o todo em partes, muitas vezes fragmentando-o e impedindo uma compreensão mais geral e contextualizada do todo, aqui entendido por meio de seus sistemas.
Portanto, desenvolvemos algumas ideias procurando demonstrar que a compreensão da realidade (do futebol, da sociedade, da natureza, do mundo) pode ser ampliada e melhorada se adotarmos o paradigma da complexidade em nossa cosmovisão ou visão de mundo, onde o pensamento sistêmico e o pensamento complexo são referências indispensáveis a serem adotadas.
Dentro desta abordagem, temos que entender a realidade através de princípios que caracterizam o próprio sistema. Destacaremos aqui alguns deles:
- O sistema possui vários elementos que interagem entre si, de forma dinâmica, penetrante e não-linear.
- Esses elementos são abertos e atuam ou interatuam entre si, influenciando e sendo influenciados pelo seu entorno e ambiente.
- Todo sistema vivo e não mecânico funciona de forma recursiva (circular), incerta e imprevisível.
- Também funciona longe do equilíbrio estático, confrontando-se com forças contrárias o tempo todo.
- Os sistemas orgânicos – e, por extensão, toda a realidade que envolve o ser humano, a sociedade e a natureza – são sempre permeados pela subjetividade e a intersubjetividade.
Todos sabemos que somos seres biopsicossociais que interagimos permanentemente entre nós mesmos, bem como com a sociedade e a natureza das quais somos parte integrante. Porém, pouco pensamos sobre o como estas interações se dão e o quanto somos capazes de influenciar e sermos influenciados pela nossa cultura e nossa história. Muitas vezes não nos damos conta sobre o fato de que somos ao mesmo tempo produtos e produtores de cultura e história. Ou seja, ao mesmo tempo que somos frutos de todo um contexto cultural e histórico, também nele podemos atuar dialeticamente modificando nosso próprio ambiente cultural e histórico. Todo ser humano vive e é capaz de se desenvolver dentro de todas as suas dimensões (materiais, biológicas, psíquicas, intelectuais, morais, espirituais etc.), procurando dar sentido às suas vidas e podendo, assim, se regenerar ou se degenerar a cada momento da existência. Aqui vale citar a frase do sociólogo e pensador Edgar Morin que afirma “o que não se regenera, se degenera”, como fonte inspiradora do nosso pensar e do nosso agir.
Dito isso, podemos considerar alguns pressupostos que nos permitirão elaborar as nossas estratégias na direção de colocarmos em prática o nosso pensar sistêmico e complexo no universo do futebol.
PRESSUPOSTOS:
- Não se pode entender as partes de um sistema de forma descontextualizada do todo e nem entender o todo desconectado de suas partes constitutivas.
Exemplo: A condição atlética de um jogador de futebol só faz sentido se analisada e percebida dentro do contexto de sua participação integral em uma partida. Também o jogo não pode ser visto dentro de toda a sua realidade e complexidade, sem considerarmos todos os elementos internos e externos que o constitui. - Todo sistema é formado por um conjunto de elementos interagindo entre si, influenciando-se mutualmente e influenciando o sistema como um todo que, por sua vez, interfere em seus elementos fazendo emergir permanentemente novas situações, instáveis e imprevisíveis. Diante desta dinâmica é mais sensato pensar que os fenômenos, as coisas, as pessoas mais “estão” do que “são”. O movimento da vida é constante, intermitente e muda a cada instante.
Exemplo: O pressuposto linear e mecanicista – ainda tão comum no futebol – que afirma que “em time que está ganhando não se mexe” não serve para este pressuposto sistêmico, pois como já destacamos, tudo muda a cada instante dentro de um sistema. Ainda dentro desta perspectiva não podemos afirmar que um jogador (ou um time) é bom ou ruim, mas sim que este jogador (ou time) está bem ou mal dentro de determinadas circunstâncias. - A vida humana é permeada incessantemente por relações interpessoais e subjetivas (intersubjetividade) que precisam ser entendidas e acolhidas para que se possamos caminhar juntos, identificando-se os propósitos comuns entre as pessoas.
Exemplo: A formação, participação e engajamento de uma equipe de futebol que busca a alta performance depende fundamentalmente de como os seus elementos se identificam e se comprometem com os objetivos comuns traçados. Para isso é essencial que as lideranças identifiquem as diferentes visões em torno dos seus propósitos comuns, potencializando-os. - Na perspectiva sistêmica e complexa, todo conhecimento deve ser entendido como algo precário e provisório e que pode nos induzir a erros, ilusões ou até a alucinações. Por isso, o exercício em busca do conhecimento lúcido e amplo deve ser sempre acompanhado de cuidados, balizado por nossos limites ou limitações.
Exemplo: Um especialista (treinador, preparador atlético, fisiologista, psicólogo, nutricionista etc.) pode ser facilmente induzido ao erro se não tiver uma noção – a mais clara possível – do todo, ou seja, de todos os fatores (além dos inerentes à sua especialidade) que podem interferir no desempenho dos atletas e da equipe de forma geral, incluindo-se aqui os macro e microssistemas que interferem no treino, no jogo e na vida de cada um e de todos.
A expectativa é que estes pressupostos e os exemplos apresentados, possam servir de inspiração ao contínuo exercício e desenvolvimento em busca de uma visão de mundo emergente capaz de abarcar os fenômenos do futebol e da vida, minimizando-se os eventuais erros que cometemos e fazendo-nos refletir com mais sabedoria sobre nossas ações individuais e coletivas.